Bill foi um miúdo do mundo das minas e seus escavadores. Das minas brutas de Gleann Buic, uma terriola perdida da província de East Ayrshire, perto de Muirkirk, no interior da_Escócia. Minas de carvão à beira de lagos que, ao contrário de Loch Ness, não tinham monstros. Bastava-lhes a monstruosidade do trabalho infantil sem controlo dos meninos adulterados que não tinham direito a infância como os outros. Só lhes exigiam que sacudissem a fuligem dos fatos mal-amanhados para ir à missa e ao futebol. E_Bill gostava de futebol._Gostava mesmo muito de futebol. Gostava tanto de futebol como odiava a vida nas minas. Gostava mais de ir ao futebol do que à missa, mas isso também eu.
John e Barbara Shankly viviam numa daquelas casas de tijolo geminadas tão férteis na Grande Ilha da glorious mud. Viviam é um eufemismo: bracejavam. Ou acotovelavam-se. Afinal ter dez filhos não é brincadeira nenhuma mesmo que todos sejam uns brincalhões do caneco. E em setembro de 1913, quando William Shankly nasceu, já tinham vindo ao mundo nove. Foi o último rapaz. Irmãs foram quatro, sendo que a mais nova, Elizabeth, ainda vivia por lá no tempo das vacas magras, ou seja, depois de os comboios passarem a ser elétricos e as lareiras alimentadas a lenha o que, decididamente, contribuiu bastante para que todos fossem abandonando Gleann Buic, ou Glenbuck, como teimam em grafar os ingleses vaidosos da sua magnífica língua de trapos que, tal como uma esponja, absorve um bocadinho de todas as outras. É preciso deixar claro, em qualquer lado, pode ser mesmo aqui, que_John tinha um estatuto superior ao dos seus vizinhos: usava ufano uma farda de carteiro e transportava de uma casa para outra a sua saqueta cheia de cuspo e erros de ortografia. E, por isso, deu-se ao luxo de ver todos os seus seis rapazes seguirem o caminho do futebol e que se lixasse o carvão. Os manos Shankly iam em grupo para os treinos de um clube dedicado aos jovens chamado Cronberry Eglinton Football Club, numa vila vizinha. Em seguida foram-se separando. Pudera! Todos juntos faziam quase uma equipa inteira, o que podia ter a sua graça mas também provocaria invejas pela certa. Bill, já sénior, alinhou no Carlisle, jogando a médio-direito. Depois passou para o Preston North-End e por lá ficou durante dezasseis anos, o que é de todo o valor. Com o Preston ganhou o seu primeiro grande título, a Taça de Inglaterra, em 1938. De repente a guerra! A rapaziada que ouviu, com o peito cheio de amor patriótico a célebre tirada de Wiston Churchill – «We shall fight on the beaches, we shall fight on the landing grounds, we shall fight in the fields and in the streets, we shall fight in the hills; we shall never surrender!» – largou os campo de futebol e partiu para as trincheiras. Bill preferiu o ar. Alistou-se na Royal Air Force. Quando voltou, com imagem de herói, preparou-se para ser treinador e dirigiu o Carlisle, o Grimsby Town, o Workington e o Huddersfield. Em dezembro de 1959 desembarcou em Liverpool e a cidade que já fora revolucionada pelos Beatles não voltou a ser a mesma. O Liverpool vogava abstrato na II_Divisão e Shankly abraçou a obra como se fosse o desígnio da sua vida. E foi mesmo. Decidiu que não queria que o equipamento tivesse calções brancos e implementou os vermelhos: «Assustamos mais os adversários se vestirmos de uma cor só», afirmou. E os reds assustaram toda a gente. Em 1962 subiram_à I Divisão. Em seguida passaram a ganhar tudo: duas Taças de Inglaterra, três campeonatos, uma Taça UEFA. Seria o seu adjunto, Bob Paisley, seu firme braço direito, a levar o Liverpool às vitórias na Taça dos Campeões, mas a alma de Bill estava lá impressa e inconfundível como uma impressão digital. Decidiu abandonar Anfield em Julho de 1974. Considerava o seu trabalho concluído. No dia em que a notícia saiu, a cidade quase colapsou. Adeptos inconsoláveis invadiram a sede do clube, trabalhadores das fábricas em redor ameaçaram greves se ele não voltasse. Não voltou. Deixou igualmente um hino para o Kop cantar: «You’ll never walk alone», uma canção do musical Carroussel, composta por Rodgers and Hammerstein em 1945. E ensinou-nos que o futebol não é uma questão de vida ou de morte. É muito mais do que isso.