«Que nos diria Mishima se estivesse aqui hoje?» A pergunta surge na parte final do filme Mishima: The Last Debate (2020) e torna-se a dúvida central que fica connosco. Realizado por Keisuke Toyoshima, este documentário cruza as imagens restauradas do filme original do debate em que Yukio Mishima (1925–1970) enfrentou um auditório com mil estudantes de extrema-esquerda e testemunhos contemporâneos de quem viveu o acontecimento e militou, de ambos os lados, naquela época conturbada.
No dia 13 de Maio de 1969, no Auditório 900 da Universidade de Tóquio, um milhar de activistas ligados ao Zenkyoto lotavam o espaço e esperavam o popular escritor de sucesso, conhecido e traduzido internacionalmente, além de fervoroso nacionalista e defensor do Imperador.
O Japão do pós-Guerra foi palco de uma forte violência política e os ventos do Maio de 68 parisiense sopraram em força nas universidades japonesas. À frente desses protestos estava o Zengakuren, uma organização de estudantes ligada ao Partido Comunista Japonês, e havia confrontos, barricadas de ruas, ocupações de universidades e até tomada de reféns. A génese de todos estes protestos era a oposição ao Tratado de Cooperação Mútua e Segurança entre os Estados Unidos da América e o Japão, conhecido como Anpo, assinado em 1951, e especialmente à sua renovação em 1960 e em 1970.
Com origem no Zengakuren, o Zenkyoto era um movimento estudantil de extrema-esquerda, ou melhor, uma liga de «comités de luta conjunta», que se opunha ao imperialismo norte-americano como ao capitalismo de Estado e ao estalinismo. Revolucionários, os seus membros recusavam a hierarquia e viam a Universidade como um sistema burocrático e opressor. Exploravam o niilismo, o existencialismo e o humanismo e tinham sido influenciados por Takaaki Yoshimoto, o «profeta» da chamada Nova Esquerda japonesa. Prezando a autonomia, afastaram-se do Partido Comunista Japonês e de outros movimentos de esquerda. Viam na violência uma forma de luta política e envolviam-se em vários confrontos com a polícia de choque, nas universidades e nas ruas, fosse contra a guerra ou contra as propinas.
Mishima aparecia como o seu arqui-inimigo e, num dos cartazes do evento, era apresentado como o «gorila anacrónico». Mas o escritor, que cultivava tanto as letras como o físico e a imagem, apareceu descontraído, fumando cigarros e sorrindo, e até concordou jocosamente com tal descrição.
São deste período os seus escritos mais políticos e foi em 1968 que Mishima fundou a Tatenokai, a Sociedade do Escudo, uma milícia que defendia os valores tradicionais japoneses e treinava com as Forças de Autodefesa do Japão, preparando-se para uma guerra civil que considerava iminente.
Qual seria o motivo de o Zenkyoto convidar o mais famoso dos reaccionários japoneses para uma discussão? Um debate intelectual entre direita e esquerda ou uma armadilha para linchar Mishima?
Quanto à protecção física, contava com alguns membros da Tatenokai que se haviam infiltrado no auditório, quanto à discussão, abriu a sessão com um discurso de dez minutos que surpreendeu a audiência hostil e aliviou a tensão inicial, provocando até algumas gargalhadas gerais.
Dizendo que tinha ali ido para verificar se as palavras ainda eram um meio de comunicação eficaz, Mishima declarou que o comunismo era o seu inimigo, mas proferiu uma das frases que ficariam para a posteridade: «de esquerda ou de direita, não sou contra a violência». De facto, tanto a violência como o desprezo pela arrogância dos professores uniam Mishima e a audiência. Foi então que deixou a sua provocação, atirando: «Gostaria de entender o que significa o anti-intelectualismo. Vocês são tão inteligentes que são contra o intelecto? Ou são anti-intelecto porque não são inteligentes?»
O que se seguiu foi uma discussão intelectual, animada e respeitosa. O primeiro orador do Zenkyoto disse mesmo que Mishima merecia mais respeito do que os professores, o que motivou o riso do escritor. Da relação com o outro ao erotismo e da violência ao conflito, passou-se à relação do Homem com a Natureza e tanto o nível como a complexidade se foram elevando.
O adversário que mais luta deu foi Masahiko Akuta, considerado como um dos melhores membros do Zenkyoto em debates, e dessa troca de argumentos há um momento memorável. Akuta, que parecia acabado de sair da cama, segurando a filha bebé com o braço esquerdo e um cigarro na mão direita, disse que Mishima «não existia sem o Japão», ao que o escritor retorquiu: «Esse sou eu.» Mishima defendeu o Imperador contando uma história pessoal da sua infância, ciente do risco de chacota, mas no final do debate a conclusão era óbvia. Apesar de adversários, tinham um inimigo comum. Por isso, um dos estudantes pediu a Mishima um favor pessoal, que ele se juntasse à causa do Zenkyoto para que lutassem em conjunto. Recusando, Mishima disse-lhe que acreditava na paixão deles, ganhando o respeito destes.
Yukio Mishima dar-se-ia à morte no ano seguinte e Mishima: The Last Debate torna esta discussão um testamento vivo.
A 25 de Novembro de 1970, depois de entrar com quatro membros do Tatenokai numa base militar no centro de Tóquio, prender o comandante e barricar-se no seu gabinete, Mishima discursa fardado da varanda para mil soldados das Forças de Autodefesa do Japão na parada. Instiga-os a juntarem-se à sua causa, a defesa do Japão tradicional e do Imperador, e a fazer um golpe de Estado. Mas, desta vez, as palavras não foram eficazes e Mishima recolheu-se para cometer seppuku, o suicídio ritual, eternizando o seu combate.
Assistir nos nossos dias a um encontro como este «último debate», em que campos opostos se respeitam, consideram as opiniões contrárias e até admitem o erro, é impensável. Será que as palavras ainda têm a mesma força?
Em Sol e Aço, Mishima afirma que «na sua essência, qualquer arte que se baseie nas palavras faz uso da sua capacidade de corroer – da sua função corrosiva». Para o escritor japonês, «as palavras são um meio que reduz a realidade a uma abstracção para ser transmitida à nossa razão, e no seu poder de corroer a realidade esconde-se inevitavelmente o perigo de as próprias palavras serem corroídas também».