Trinta mil dólares pela desforra de Berna

O Benfica-Barcelona de terça-feira faz recordar um dos jogos mais esquecidos entre ambos os clubes

Próxima terça-feira, no Estádio da Luz, temos um Benfica-Barcelona, e apesar da grande diferença que atualmente separa as duas equipas, com vantagem evidente para os catalães, há algo que a história do futebol nos ensinou: é um clássico. Oficialmente, ambos já se defrontaram por nove vezes, todas elas para a Taça/Liga dos Campeões. Por opostas razões, o mais marcante tanto para uns como para outros, foi o de 31 de maio de 1961 quando, em Berna, uma vitória por 3-2 deu aos portugueses a sua primeira Taça dos Campeões. Mas há um jogo misterioso, perdido lá no fundo do poço do olvido, que me interessa particularmente pelas características que o rodearam. Já lá chego.
‘La final de los palos cuadrados’, escreveram os jornais da Catalunha, depois da decisiva partida do Estádio Wankdorf. Quatro bolas nos postes da equipa encarnada: Kocsis, Kubala (duas vezes) e Czibor. Três húngaros infelizes nessa noite. Confusos, feridos no seu orgulho de Grande de Espanha, os blaugrana não largavam a justificação dos postes. Criaram o mito e agarram-se a ele como um náufrago se agarra a um pequeno pedaço de madeira. Demoraria mais de trinta anos até vencerem a Taça dosCampeões. E bradavam por desforra.
Era aqui, portanto, que eu queria chegar: 22 de novembro de 1961. Depois de muita insistência o Benfica cede. Um jornal português anuncia nesse dia: «Em jogo particular, pelo qual o Barcelona pagará 30 mil dólares o Benfica defronta esta noite o Barcelona FC, no Estádio de ‘Nov Camp’ (sic), às 20 horas». E acrescentava: «Durante o encontro pode fazer-se um número ilimitado de substituições, sendo de encarar a utilização deEusébio no caso de ser necessário levar a efeito um teste a fim de se avaliar a natureza da lesão que o moçambicano padece num joelho». Pobre Eusébio e o seu joelho maldito.

Não houve desforra de Berna
Tanta era a gana barcelonista de desforra. Tanta era a vontade, se calhar necessidade, de bater o Benfica. E, no entanto, apesar dos culés que orlavam nas bancadas, era um Barcelona estropiado de seis dos titulares de Berna: Ramallets, Segarra, Maertinez, Kubala, Suarez e Czibor. Muito pouco para vencer os campeões da Europa. Que pareceram apiedar-se dos seus adversários e mantiveram estranhamente calmos no ataque. Em 1961, faltava dinheiro ao Barcelona. O clube vivia momentos complicados. Um jornalista espanhol não perdeu a oportunidade da chalaça: «O Benfica já depenou suficientemente o Barça em pesetas e não quis acabrunhá-lo com golos». Outro também jogava mão do humor: «Se neste momento Madrid recebe tão bem o presidente Américo Thomaz, como haveria o Benfica de fazer miséria».
Não, não houve desforra de Berna. Um Benfica muito superior jogou apenas o que foi necessário para um empate simpático. Respigo de uma crónica: «O trabalho de equipa do Benfica assentou numa perfeita ligação da defesa com o ataque, proporcionada pelos dois médios, Neto e Cruz, e pelos dois interiores, Santana e Coluna. E se Neto não teve no jogo de ontem bagagem técnica, física ou atlética para ir além do que lhe era exigido, a verdade é que os outros três estiveram de tal modo acima da vulgaridade que bastariam para transformar uma equipa numa boa equipa».
Santana faz 1-0;Evaristo empata: 1-1. Na primeira parte. O resultado ficou-se por aí.

Benfica cada vez mais valioso
Mas ainda houve tempo, nessa noite fria e tempestuosa de novembro, de ver Eusébio jogar como só ele. «Eusébio não tem uma característica própria; os seus dribles são fantasia pura, as suas arrancadas aparecem quando não se esperam, os seus remates saem secos, fortes, colocados em qualquer ocasião, as suas concepções das jogadas não cabem nos limites estreitos de qualquer tratado: ele é futebol. E por isso está em permanente revolta com o que já foi escrito, dito e cinematografado sobre o assunto». Assinava Ruiz Rodriguez. Era a primeira vez que o rapazinho da Mafalala jogava em Espanha.
A primeira parte do Benfica é brilhante de classe e de clareza no seu futebol ofensivo. O Barça vê-se dominado, controlado, incapaz. Na segunda parte, Béla Guttmann defende. Lança jogadores novos: Simões, Torres, Mário João. No fim sorri: «Para a próxima cobraremos 35 mil dólares». O Benfica ia valendo cada vez mais.
Mais uma vez Rodriguez: «O Benfica, que até ao descanso considerara o Barcelona um interlocutor válido, passou então a tratar os catalães como a mãe de muitos filhos geralmente trata os miúdos: assumiu o ar simples que quem tem de aturar crianças – e deixou-as brincar livremente, limitando-se a intervir quando elas incomodavam demasiado».
Com o aproximar do minuto noventa, o campo passou a ser um lamaçal. Águas queixava-se: «Na segunda parte ressentimo-nos do esforço pois o terreno encharcado prejudicava e desgastava». Todos saíram de Camp Nou com a certeza de que o Benfica era muito superior ao Barcelona. Agora vive apenas de saudades…