Na Saúde, mais do mesmo não nos trará nada de diferente

A reforma do sistema de saúde português terá, forçosamente, que passar por um ‘pacto de regime’.

É inegável que o sector da saúde tem conhecido tempos de grande perturbação.

São urgências fechadas, são esperas inaceitáveis, são quadros dirigentes que mudam a um ritmo impensável, é toda uma sucessão conturbada que não vemos na maioria dos países com que gostamos de nos comparar. Todo um conjunto de acontecimentos negativos que pouco aportam à credibilidade do sistema e que se repercutem inevitavelmente no acesso e no nível dos cuidados prestados.

Habituados a tanta turbulência, arriscamos até tomá-la como normal, mas não é!

Poderíamos esperar que mudanças de governo produzissem mudanças nos resultados, mas não. Poderíamos pensar que o preenchimento de lugares fulcrais na saúde passaria a seguir critérios técnicos e fugiria às escolhas de confiança política, mas não. Poderíamos, até, esperar que reformas propaladas como as mais transformadoras e competentes viessem a modificar o estado das coisas, a saúde de todos nós, mas não.  Porque será? Não será por falta de competência dos sucessivos protagonistas envolvidos, e por falta de dinheiro também não, pois nunca a despesa corrente foi tão elevada, com 18 biliões para o SNS e 12 biliões para o dispêndio privado, um crescimento de quase 5 % ao ano… E, quanto à população, a nossa poderá ser até mais idosa, mas não necessariamente mais desafiante para tratar do que a dos nossos congéneres europeus.

Não valerá a pena, será até perigosamente enganador, repetir que os nossos indicadores de saúde são bons, nalguns casos até invejados, ocupando Portugal a honrosa 13.ª posição no Euro Health Consumer Index. Certo é que a percepção geral sobre o funcionamento do nosso sistema de saúde é má e assim sentida por quem dele precisa. Se o nível dos cuidados é muito bom, já o seu acesso é muito mau, para não falarmos do dispêndio familiar que é proibitivo, o dobro da OCDE, e estimado em quase 40% da despesa total.  Temos uma saúde com mau acesso e forte dispêndio familiar.

Há, fundamentalmente, três razões para a nossa incapacidade crónica relativamente à saúde: A primeira reside na falácia, hoje ainda com forte romancismo político, de que financiando o Serviço Nacional de Saúde a 60% da despesa total se podem assegurar cuidados ‘universais e tendencialmente gratuitos’ – falácia de que o SNS tem capacidade para tudo assegurar e, ainda mais, de graça. Esta visão teima em ignorar a bem diferenciada capacidade dos sectores social e privado, enquanto vai forçando um número cada vez maior de nós a encontrar respostas fora do SNS; assim pervertendo a equidade que o SNS deveria seminalmente promover, no forçar ricos e pobres a um mesmo dispêndio directo com a sua saúde. A resposta seria um sistema de saúde envolvente e integrado, fortemente regulado pelo estado ou, como costuma dizer-se, tendo o SNS como eixo, e permitindo livre acesso e escolha pelos cidadãos. A segunda razão reside no facto da saúde continuar, cinquenta anos após a revolução, aprisionada pela ideologia e como arma de arremesso político. Este é um romantismo perigoso que tem tolhido decisões racionais, que escrutina tudo a todos, tendo em vista uma demissão hoje, um voto amanhã e, depois, um emprego…. A terceira razão prende-se com a falência do modelo conceptual de prestação de cuidados de saúde que temos. Inspirado no modelo Beverdigiano inglês e sistematicamente ignorando a falência desse mesmo, persiste inadequado às transformações da saúde e da modernidade. Numa alternativa que vem surgindo mais vantajosa, a Bismarkiana, o financiamento terá de encontrar fontes alternativas mutualistas que não sobrecarreguem mais as famílias. O estado terá de uma vez por todas, assumir-se com forte regulador e os doentes poderão passar a aceder livremente a uma diversificada rede de prestadores – públicos, privados e sociais, estes competindo em rede pela rapidez de acesso, pela qualidade e pela satisfação gerada sem a erosão e o risco financeiro que experimentam no presente.

Por tudo isto é imperiosa uma reforma verdadeiramente transformadora do sistema de saúde português. Basta de mudanças incrementais, de variações de um mesmo tom, que só adiarão o problema: até uma nova urgência encerrada, até um novo inquérito, um novo culpado, uma nova trica política, uma outra nomeação…

A reforma do sistema de saúde português é imperiosa e não dispensará uma forte quanto patriótica vontade e orientação política que terá, forçosamente, que passar por um ‘pacto de regime’ para a saúde. Se o não fizermos, nenhum governo nos será bom, nenhum ministro terá sucesso, nenhuma medida terá impacto, nenhum financiamento será suficiente. Em suma, se continuaremos a fazer mais do mesmo, iremos ter mais do que já temos e se isso pode até ir entretendo as audiências, será certo que não aportará melhor saúde para todos nós. É mesmo preciso ter a coragem para reformar!

Médico e Professor Universitário