O discurso de J.D.Vance no início de 2025 em Munique na Conferência de Segurança é uma das peças fundamentais de uma revolução que o Ocidente está a viver em que a recuperação da democracia, da liberdade de expressão e dos valores fundamentais são pedras angulares. Esse discurso deve obrigar a debater aspetos decisivos para a nossa sobrevivência no plano civilizacional e existencial, como os de saber o que se passa com o ocidente? Se ainda vivemos em democracia? O que é a Europa? No que se transformou e o que pretende ser? O que é, na verdade, o progressismo? Qual o impacto de um poder transnacional e amoral nas nações e na vida das pessoas? Se a Europa está em colapso, assim como a democracia, onde estão os verdadeiros fatores desse declínio, e que respostas existem? Qual o grau de responsabilidade das elites liberais e progressistas na destruição da democracia e no ataque à liberdade?
Este discurso é referencial no século XXI, pelo que significa, num mundo desidentificado, regido pela ideia da sociedade mercado e mundo tecnológico sem um saber dos seus fins e onde foram destruídos os alicerces éticos e das conceções de bem baseadas nos nossos valores fundamentais. A ideia Panglossiana que vivemos no melhor dos mundos, por muito que irrite os donos do sistema, já só ilude os tolos.
Afirmar a decadência de uma cultura é problemático, mas estamos no campo do factual, o ocidente está em declínio. O filósofo Fernando Gil dizia com frequências: “nunca se ocupe da área da Filosofia da Cultura numa análise sobre o presente, tudo pode ser dito, uma coisa e o seu contrário e estará sempre certo e errado”. É difícil proceder a uma análise critica, factual e rigorosa sobre a história e a cultura, mas somos filhos do nosso tempo que nos desafia, principalmente porque temos responsabilidades, quer para com o passado, quer com o futuro. Vivemos uma das mais difíceis épocas da modernidade, mais até que o período das grandes guerras mundiais. Podemos afirmar que não estamos apenas perante o fim de uma civilização, mas considerando a tecnologia que dispomos e as finalidades da mundividência dominante, perante o fim da própria civilização e do homem.
Cada tempo, cada época, cada sociedade tem as suas obsessões, os seus dogmas, as suas polarizações. Aquilo pelo qual se vive e morre num tempo é com frequência insignificante algumas décadas depois, mas há um conjunto de conteúdos, de descobertas, de experiências que provaram ser melhores, que são perpétuas, o qual são os grandes tesouros civilizacionais, e devem ser defendidos, recordados e transmitidos. Esses tesouros são os livros, os comportamentos, certos valores, o exemplo de certos homens. Pela exemplaridade desses tesouros podemos nomeá-los de sagrados, não num sentido religioso, mas porque se distinguem daquilo que é mutável, subjetivo e relativo. A transmissão desses tesouros constitui um fio condutor do qual somos responsáveis, ora, o tempo presente, recusa esse tesouro, e sem ele somos apenas viajantes com mapas irracionais e absurdos para nos orientarmos na vida.
Um exemplo simples de um discurso que faz parte desse tesouro. O discurso atribuído a Péricles, a “Oração Fúnebre” é uma dessas peças porque defende valores eternos e mais valiosos que aquilo que é comum e banal. Os valores da liberdade, da democracia (da verdadeira), da coragem, da honra, da tradição são o motivo do lugar desse texto no tesouro da civilização ocidental. O discurso de J.D.Vance atualiza em parte a lição grega da Oração Fúnebre.
Vitor S. Santos resumiu de modo notável esta conferência. Vance começou por salientar que a maior ameaça à segurança da Europa não vem da Rússia, da China, ou de outro ator externo, mas de dentro de si própria, e traduz-se no retrocesso dos valores democráticos que nela se verifica. E na sua lição magistral sobre democracia referiu o elementar mais fundamental, sem liberdade de expressão, não há democracia. Paradoxalmente, no dia seguinte, o ministro alemão dos negócios estrangeiros, Boris Pistorius, considerou o discurso de Vance inaceitável.
Sem liberdade de imprensa, não há democracia. A democracia não é compatível com a perseguição de cidadãos por delitos de opinião, nem compatível com o cancelamento de eleições quando o resultado destas não agrada ao poder político instalado, como aconteceu recentemente na Roménia e um antigo comissário europeu ameaçou que poderá acontecer na Alemanha nas próximas eleições nacionais. As elites políticas europeias não podem divorciar-se dos povos europeus, nem ter medo deles. Não tem legitimidade democrática quem censura a opinião política divergente e põe os seus opositores na prisão, sejam este o líder de outro partido, um cidadão que expressa a sua opinião ou um jornalista que pretende fazer o seu trabalho. Não se pode invocar a liberdade para cercear a liberdade dos seus. A democracia não é compatível com o cancelamento de partidos políticos, ou com «cordões sanitários» em torno de partidos políticos que recebem votos tão legítimos quanto os dos restantes. A imigração em massa de pessoas não europeias, fomentada pelas elites políticas sem legitimação popular, constitui uma ameaça aos povos da Europa.
Defender a democracia só faz sentido se regressarmos ao seu sentido original da paideia grega, um sistema de educação e formação ética que legitima o “poder do povo”, em que este é de facto livre e detém o poder expresso no debate público, aberto, critico e plural.
Recordemos que não havia partidos profissionais nesse modelo grego, nem uma oligarquia não escrutinável. A democracia grega era imperfeita, mulheres e não cidadãos não podiam participar na administração da política, mas o grau de participação dos cidadãos torna as supostas democracias actuais uma anedota. Não há democracia onde os políticos profissionais, partidos institucionalizados e uma oligarquia que detém o poder o exerce de modo tirânico. No Ocidente, governos e processos antidemocráticos dizem agir em função da democracia, mas usam a censura em nome da liberdade, cancelam e demonizam os adversários, impõem um pensamento único, dizem eles, para salvar democracia, silenciam as oposições genuínas e rotulam a expressão e o pensamento divergente como inaceitável em nome da liberdade de expressão, os média rotulam de desinformação e discurso do ódio o que não se verga a esse pensamento hegemónico de quem detém o poder no sistema. O Estado é também cada vez mais omnipresente na vida das pessoas, as técnicas de vigilância e controlo, como de manipulação conhecem níveis de intervenção inéditos, e existe de facto um poder transnacional e oligárquico sem paralelo sobre a vida pública e privada das pessoas. As evidências que o liberalismo dominante e o seu progressismo são antidemocráticos são indubitáveis.
Esse discurso deve estar agora sempre presente para compreendermos a revolução ideológica em curso no ocidente. Destaquemos que não versou sobre economia e mais economia, mas sobre valores, sobre ética e sobre o que é a verdadeira democracia e a liberdade, assim como reavivou a importância da luta contra todas as formas encapotadas de tirania, mesmo as que se disfarçam sob a capa de democracias e da descoberta da dogmática do bem definitivo e irrecusável.
Nesse diagnóstico civilizacional delineia-se um programa de ação centrado principalmente na recuperação do verdadeiro regime democrático que provem das pessoas e não de uma oligarquia todo-poderoso, na apologia da liberdade de pensamento e expressão e no Estado de Direito não vergado à ideologia. O diagnóstico confirma que esses pilares da democracia foram sequestrados e reformulados pelas elites do sistema liberal progressista, na Europa e nos EUA. Estamos a viver num mundo cada vez mais falsificado e num autêntico totalitarismo onde poucos, que não são escrutinados, têm um poder incomensurável sobre os muitos. Os alegados grandes defensores da democracia são os seus principais inimigos e não basta impor palavras com um poder mágico como “democracia liberal” e “progressismo” para que tudo legitime a ação dessa elite totalitária e da sua oligarquia.
As ideias progressistas não passam afinal de distopias grotescas que atomizam os indivíduos e os tornam maleáveis a todas as manipulações. A luta é titânica. Patrick Deneen, um dos principais filósofos contemporâneos, e figura influente no pensamento de Vance, refere que os antigos tiranos teriam inveja do poder de controlo das atuais elites sobre os cidadãos.
O Ocidente, particularmente a Europa que teve décadas efetivamente promissoras no plano político, ético e económico a seguir à Segunda Guerra Mundial, entrou numa espiral de destruição do valor, quer económico, quer ético, e vive atualmente numa ficção democrática onde predominam práticas sinistras de manipulação e controlo.
Vance refere que os assuntos europeus dizem respeito aos próprios, mas há um conjunto de valores fundamentais que eram compartilhados entre a Europa e os EUA e que as elites europeus não só abandonaram como traíram e é urgente recuperar. No século XX conseguimos derrotar o comunismo, o nazismo e o fascismo, mas sob a égide do triunfo do poder transnacional liberal e da caução progressista, o ocidente está de novo a necessitar de travar a grande batalha, pois está transformado num amontado de lixo social, ético, civilizacional, económico e psicológico, escorada num sistema de propagação de narrativas falsas e da imposição de um pensamento único que não admite alternativa. Esta constatação encontramo-la em Hanna Arendt quando referia o totalitarismo soft para que tenderia o ocidente no pós II guerra mundial, o totalitarismo cortês de que fala Onfray a propósito da U.E., o alerta sobre aquilo em que se transformariam as democracias anunciado por Orwell e Huxley.
Um novo paradigma ideológico que já não é apenas circunstancial está a percorrer de modo sísmico o Ocidente, e apesar das manobras de demonização do sistema, já não se trata de algo pontual ou da irrupção de figuras exóticas. Na fase atual, Trump e outros na Europa, são figuras necessárias pela coragem e até loucura para confrontar um adversário implacável que usa todos os truques para ver o seu domínio inquestionável. Mas foi precisamente a primeira eleição de Trump a marcar o início dessa nova Era. Em 2024 ganhou de novo as eleições, e é curioso, como parece ter já apenas um papel instrumental, pois se consolidou um novo projeto revolucionário, embora conservador.
Algo de transformador está a acontecer no plano das ideias, e se para o sistema é um ataque tenebroso ao progresso, para essa nova revolução trata-se de uma vaga de esperança assente numa renovada exigência ética e civilizacional.
O poder da mundividência ainda dominante é da tal ordem, que ainda são legítimas as dúvidas sobre as hipóteses de triunfo desta verdadeira alternativa. Mas, na verdade, o grau de destruição que tem gerado nas pessoas e nas comunidades, em todos os domínios da vida, o afastamento das suas elites relativamente às pessoas e até à realidade, atingiu uma tal extensão que é praticamente impossível não haver uma poderosa exigência de mudança.
Essa destruição é factual, não se trata de um ponto de vista. Aquilo em que se transformou, por exemplo, a U.E., no plano ético e económico, o poder transnacional e globalista que a controla, o poder dos mercados sobre as nações soberanas e as pessoas comuns, os cidadãos, reduzidos a consumidores alienados, o manicómio progressista que supera em muitos domínios os aspetos mais delirantes das maiores distopias da história, provocou mais danos à democracia e à liberdade que as ditaduras do século XX.
As pessoas e as suas preocupações são ignoradas pelo processo político, o cidadão já não é dono do seu destino, nem do governo da sociedade, uma oligarquia implacável detém um poder único e nunca o abismo foi tão profundo entre o poder e as pessoas. Um novo capitalismo, só possível com a colaboração liberal socialista tem desenvolvido por todos os meios, novas formas de censura e controlo de informação, redesenhando a arquitetura mental e comportamental das pessoas para serem meras marionetas de um poder que age sobre elas sem qualquer resistência intermédia.
Está em causa a nossa vida e o futuro, há uma guerra decisiva a travar, foi essa a mensagem que Vance expôs com uma clareza moral que desapareceu nas últimas décadas do ocidente. Há apenas dois caminhos, o acentuar dessa crise, negando-a e diabolizando a sua denúncia ou a recuperação do declínio da civilização ocidental.