Os deuses das pequenas coisas

A avaliação e reconhecimento das crianças feitos só nas alturas de avaliação, tanto na escola como no desporto, são muito reducionistas.

É o derby do ano entre os dois clubes que disputam o 1.º lugar da tabela. Um jogo muito esperado e renhido que leva pais e filhos a entrarem ansiosos no pavilhão. A pressão é muita e o desfecho já conhecemos: ou empatam ou para uma equipa ganhar a outra vai ter de perder, e com ela um conjunto de bons atletas vai sentir-se arrasado.

Durante o jogo cada movimento é acompanhado por gritos de entusiasmo ou desespero, cânticos, palmas, alguns insultos ao árbitro, assobios e muito sofrimento. Como se tudo dependesse daquele momento e do desempenho que cada um dos jogadores tivesse em campo. Ou seja, menos de uma hora para mostrarem o que valem.

Enquanto assistia àquela tensão, pensava no que ela significaria para todas as crianças envolvidas. E também para os pais. Mal comparado, lembrei-me dos animais no circo, dos instantes que têm para mostrar as suas habilidades. E também dos testes na escola em que se decide tanto em poucos minutos.

A avaliação ‘de desempenho’ das crianças é feita maioritariamente por surtos: os testes, os golos, os saraus… Como se esses momentos as definissem, como se fossem melhores ou piores em todos os aspetos por marcarem mais ou menos golos, por terem melhores ou piores notas.

É sobretudo acerca dessa avaliação quantitativa – que, ainda para mais, pode ser influenciada por múltiplos fatores – que as crianças recebem um retorno positivo ou negativo. Se tiver cinco num teste, provavelmente será felicitada. Se marcar três golos fazem-lhe uma festa. E se tiver 3? E se não marcar golos? Quando vai ser felicitada? Quando é que lhe vão dizer ou mostrar que é ótima, que tem imensas qualidades, que é fora de série, que é única? Será que uma criança com cinco a tudo na escola é melhor ou merece um reconhecimento especial?

O esforço, a forma de ser e de estar das crianças devem ser reconhecidos no dia-a-dia. Elas devem ser elogiadas não só pelos resultados das provas, mas por aquilo que são. Pelas suas qualidades, pelos esforços. Pela ajuda que prestam aos outros, pela simpatia, gentileza e educação, pelo empenho, pelo sentido de justiça, pela bondade, pelo bom comportamento, pelo sentido de responsabilidade. Pelas suas características únicas. Pelo que são todos os dias, por aquilo por que se esforçam, pelas pequenas conquistas, pelos sonhos, pelos tesouros de cada um.

A avaliação e reconhecimento feitos só nas alturas de avaliação, tanto na escola como no desporto, são muito reducionistas para o universo quase infinito de qualidades incríveis e características únicas de uma criança sempre em mudança e desenvolvimento.

Não se deve estar constantemente a elogiar ‘por tudo e por nada’, o que acaba por desvalorizar os verdadeiros esforços, mas a criança deve ser encorajada, olhada e acompanhada em todas as áreas, nas suas conquistas e empenho.

Só assim é possível crescer com segurança, determinação e confiança, sentir-se bem e valorizada e ser capaz de marcar os tais três ou mais golos e ser uma verdadeira  campeã – no futebol ou, o mais importante, na vida.