Antes das vis inversões wokistas de Cinderelas lésbicas e Brancas de Neve transgéneros os contos infantis ainda guardavam certos elos perenes. Entre esses contos eu preferia O Gato das Botas, aqui dito num ai: era uma vez um moleiro que ao morrer deixou o moinho ao filho mais velho, um burro ao do meio e um gato ao mais novo, assim privado de meios de subsistência; suprindo tal desamparo e para surpresa do rapaz o gato falava e pediu apenas um saco e um par de botas com os quais caçou lebres e perdizes, ofertando-as ao rei em nome do Marquês de Carabás, assim fazendo fidalgo o agora seu amo e senhor; com astúcia e peripécias ágeis depressa inventou herdades e fez da princesa, filha do rei, apaixonada pelo novo Marquês; por fim, entrou no castelo de um rico ogre, vaidoso mágico que, por arrogância se fez leão e por tolice, rato, que o gato, com botas ou sem elas, depressa devorou num salto; a princesa casou com o rapaz e reinaram felizes. O engenho vence a indigência anunciada.
Na minha escola primária a História de Portugal era contada em sentido além do verismo historiográfico levando as crianças a amarem a nação que os séculos haviam formado; mera propaganda, dirão aqueles portugueses de hoje que o não querem ser. A razão crítica, a existir, ficaria para depois, no liceu, frente a teses dialéticas desde que, verdade seja dita, escusassem as versões comunistas então já dominantes. O sentido da minha escola não deveria ser muito diferente do que, cinco séculos antes, o próprio Camões aprendera ao dizer: «Eis aqui, quase cume da cabeça/ De Europa toda, o Reino Lusitano/ Onde a terra se acaba e o mar começa/ E onde Febo repousa no Oceano», assim Pessoa que há cem anos viu que «A Europa jaz, posta nos cotovelos» (…) e «O rosto com que fita é Portugal». Somos ou não uma cabeça, ainda que num mapa, quando nas últimas cinco décadas nos afirmam sermos cauda? Somos rosto e nem cara temos para nos apresentarmos educados, ricos e decentes ante os donos europeus que nos pagam? Está visto, os poetas que adulamos andaram a enganar-nos, fizeram de nós crianças e, sermos cabeça da Europa ou crermos num gato falante que usa botas, a coisa não anda longe uma da outra.
Era uma vez um rei da Europa com três filhos, ao mais velho deixou-lhe muitas fábricas no reino do norte, ao do meio ricas terras agrícolas a sul e ao mais novo um barquinho, talvez de papel que metia água muitas vezes. O petiz foi correr mundo e fez-se ao mar num barco à vela, contra ventos e a favor de algumas marés, mareou à bolina com o engenho de tornear obstáculos maiores do que as suas forças, fez feitorias em vez de impérios com a astúcia de fazer forte a sua pouca gente, comprou e vendeu o que uns fabricavam e outros colhiam, mostrou que «Deus quis que a terra fosse toda uma/ Que o mar unisse, já não separasse». No regresso viu afinal que o rei que a Europa sempre quis ter não morrera, foi mudando de nome, desde Roma a Napoleão, depois Hitler e Estaline entre guerras e horrores até aos herdeiros residuais da União Europeia federada, vã e velha tentação de uma cooperativa de gente senil muito racionalista e, por isso mesmo mal pensada, pois nunca o idealmente lógico resultou certeiro. A União Europeia rejeitou os símbolos que fizeram a Europa e a realidade transcendente que deles emana, entre eles o coração da matriz cristã que o wokismo, qual ogre, hoje se arroga engolir.
Há uns anos Paulo Rangel, o agora Ministro dos Negócios dos Estrangeiros em afã indecoroso e submisso ao federalismo do reino franco-alemão veio dizer-nos que haverá «um dia em que não vai haver portugueses». Claro, e também moldavos e franceses, europeus e o planeta Terra, da providência eterna nada sabemos, mas olhe que não, Dr. Rangel, a coisa é outra enquanto não nos obrigarem a todos falarmos inglês: numa Europa sem símbolos nem cabeça talvez lhe falte o engenho do gato, mesmo sem botas, mas que fale português e fite Bruxelas, que por arrogância, as nações ignora.