A obra de Tamara de Lempicka (1894–1980), pintora polaca que passou grande parte da vida em França e nos Estados Unidos, captou o glamour, a elegância e a modernidade das décadas de 1920 e 1930. Verdadeiros ícones da Art Déco, os seus retratos de socialites e aristocratas, marcados por um «cubismo suave», espelham de forma singular a sua própria vida profissional e pessoal. Afinal, como observou Jean Cocteau, ela «amava a arte e a alta sociedade em igual medida». Da peculiaridade da sua obra, a própria afirmou: «Entre cem pinturas, era sempre possível reconhecer as minhas»; «As galerias… colocavam-me nas melhores salas, sempre ao centro, pois a minha arte atraía as pessoas».
Figura emblemática da boémia parisiense, Lempicka era abertamente bissexual. Os casos com mulheres traduziram-se em ousados nus nalgumas das suas obras, como em A Bela Rafaela (1925). Casada com o advogado Tadeusz Łempicki, teve uma filha, mas a união terminou em divórcio. Uma das mãos do retrato do marido – Retrato de um Homem (1928) – ficou por pintar. Em 1934 casou-se com o barão Raoul Kuffner, um húngaro judeu, herdeiro de um império industrial no setor alimentar.
Em 1939, a perseguição nazi aos judeus levou o casal a mudar-se para Beverly Hills, na Califórnia, mas o sucesso alcançado ficou aquém das expectativas. Em 1943, trocaram Los Angeles por Nova Iorque, onde o estilo da artista ainda atraía alguma clientela endinheirada. No entanto, era cada vez mais evidente que o tempo da Art Déco chegava ao fim. Após uma década de pausa, Lempicka tentou novas abordagens artísticas, mas sem resultados significativos. Com a morte do marido, em 1961, e depois de três viagens ao redor do mundo, fixou-se em Houston, onde a filha residia. Abandonou a carreira e limitou-se a refazer algumas das suas antigas obras. Em 1974, mudou-se para Cuernavaca, no México, onde faleceu em 1980.
A sua redescoberta começou com uma exposição em Paris em 1972, intensificando-se após a sua morte. (Hoje em dia, Madonna conta-se entre os colecionadores das suas obras.) A peça Tamara (1981), do dramaturgo canadiano John Krizanc, inspirada na relação que teve com o escritor italiano Gabriel d’Annunzio (1863-1938), esteve em cena uma década em Los Angeles. Em Portugal, foi encenada por Carlos Carvalheiro para o grupo nabantino Fatias de Cá.
Embora preferisse representar corpos femininos, incluindo vários autorretratos – destacando-se o de 1928, ao volante de um Bugatti verde (possuía, na verdade, um Renault amarelo!) – Lempicka produziu, nos anos loucos de Paris, um grande retrato masculino: o do Dr. Pierre Boucard (imagem). Envergando uma bata de laboratório que lembra a gabardina de um galã de cinema e virando-se para a luz, o rico e famoso médico-bacteriologista francês segura um tubo de ensaio com a mão direita, enquanto a esquerda repousa num microscópio. Foi em grande parte graças ao seu mecenato que a artista manteve um exuberante estilo de vida. Colecionador de arte, Boucard adquiriu várias das suas obras e encomendou-lhe o retrato da esposa e o seu próprio. A fortuna provinha do Lactéol®, um agente probiótico antidiarreico que desenvolveu em 1907 a partir de bactérias do género Lactobacillus.
Atualmente, o Lactéol® é ainda utilizado, embora na forma de um agente pós-biótico, sem bactérias vivas, contendo apenas os seus compostos bioativos. Paralelamente, assiste-se hoje a uma crescente procura de alimentos ricos em probióticos, nomeadamente produtos fermentados como iogurte, kefir, chucrute e kimchi. Os seus microrganismos vivos – bactérias ou leveduras – não só equilibram a flora intestinal, como podem inibir o crescimento de agentes patogénicos e modular a resposta imunitária, revelando-se benéficos para a saúde quando consumidos em quantidades adequadas.
A ideia de colonizar o intestino com bactérias benéficas partiu do microbiologista franco-russo Ilya Mechnikov (1845-1916) – Nobel da Medicina em 1908 pelo seu trabalho em imunologia – ao observar a longevidade dos camponeses búlgaros, consumidores de grandes quantidades de produtos lácteos fermentados. Recorrendo a uma linguagem contemporânea, poder-se-á dizer que foram as suas ideias que originaram a criação, por Boucard, de uma start-up bem-sucedida.
O Retrato do Doutor Boucard (1928) de Lempicka irá a leilão na Christie’s, em Londres, no próximo dia 5 de março, com uma estimativa de venda entre seis e nove milhões de euros. Em 2020, o Retrato de Marjorie Ferry (1932), já chamado de ‘Mona Lisa da Art Déco’, estabeleceu um recorde, ao ser arrematado na mesma leiloeira por 19,5 milhões de euros.
Químico