O Portugal esquecido de si próprio envergonha-se de afirmar que a alma portuguesa se chama Saudade, não a percebe prenhe de futuro. Mas falemos primeiro de Penélope, mulher de Ulisses, herói que na Odisseia regressa a casa após a Guerra de Troia narrada na Ilíada, tudo isto passado ou contado – aqui é o mesmo – quase há trinta séculos! Ulisses, rei de Ítaca, viaja com os seus nautas entre errores, armadilhas e obstáculos durante vinte anos, tempo largo para que seja imposta a Penélope a óbvia viuvez e consequente novo marido frente ao vazio do trono real. A sua lealdade esponsal, confiante e sábia no regresso de Ulisses, dá-lhe astúcia escondida numa proposta para protelar a ambição e a luxúria das dezenas de pretendentes que lhe assolam o palácio: irá tecer um véu de linho findo o qual casará de novo, se Ulisses não voltar; entretanto, às ocultas, em cada noite desfaz o que tece durante o dia no véu sempre inacabado. Ulisses volta vencendo a ‘prova do arco’ e reocupa o trono. A saudade de Penélope não se perdeu num passado de dor e ausência, antes lhe deu esperança a tecer véu de futuro.
As elites tecnocratas que nos desgovernam e as do esquerdismo rasca enlatado em caviar exibem desdém doentio pela palavra saudade. Acham-na coisa de velhos, talvez acertem, mas o que mais lhes dói é saberem-na inerente a portugalidade. Todavia, a saudade é criadora em tensão singular entre lembrança e desejo, catalisando ausências capazes de presenças criativas, futurantes pois.
Teixeira de Pascoaes, poeta do Regresso ao Paraíso e prosador da Arte de Ser Português, passou a vida a dizer-nos que a saudade é coisa tão portuguesa que a sabe intraduzível, isto é, o que com ela dizemos, as outras línguas jamais o dirão. Além dessa palavra acrescenta outras cuja ressonância última de «feição misteriosa, vaga e indefinida» podemos perscrutar em «remoto, ermo, oculto, luar, nevoeiro, medo, sombra, etc.». Pensar a saudade é ir muito além do que seja solidão ou melancolia, privação ou nostalgia, sentimentos que outras línguas e latitudes nos podem dar buscando memórias sentidas, isto é, o passado abre ausências no presente num tempo tido e irreparável. Um dos nossos escritores, antecipadamente saudosista, D. Francisco Manuel de Melo, diz da saudade «ser um mal, de que se gosta, e um bem que se padece» e Garrett vê nela «um gosto amargo de infelizes/ delicioso pungir de acerbo espinho». Além destas faúlhas paradoxais a saudade subiu a transcender sentimentos, a viva recordação passa a intuição criadora, tecida a exemplo da tessitura do véu de linho de Penélope, feito e refeito, criando tensão real entre ser e nada, existir e não haver, até que a fé se transcenda em imanência. O Regresso ao Paraíso de Pascoaes é a saudade do céu incrustada e dormente na alma humana na espera de ser acordada. Por ela somos sempre Ulisses no regresso a casa, esperança da morada eterna a cumprir. O mesmo vemos em Camões quando os nautas lusíadas ao regressarem da Índia que é a nossa Odisseia, encontram a Ilha do Amor, ínsula divina «que Vénus pelas ondas lhes levava/ Bem como o vento leva branca vela», ou seja, o amor é que é movente, ao invés das pétreas estruturas humanas. A saudade é a saudade de Deus. Pode ou não cada vida encontrá-la em navegação necessariamente à bolina pois além dos de feição, há sempre ventos contrários. Neles, a subtil lusa astúcia ajuda, assim escutemos a voz de Deus.
Séculos antes da Odisseia grega Salomão pediu um coração inteligente capaz de governar o povo e discernir entre o bem e o mal, e Deus, vendo que não pedira longa vida nem riquezas, deu-lhe um «coração sábio como não existiu nem existirá outro igual», diz a Bíblia. Em Penélope há esperança, em Salomão fé. A saudade é sábia, vive na alma lusa em esperança e em fé e, por isso, ‘matamos saudades’ para termos a saúde que o amor dá. Cegas, as nossas elites recusam-nos cada vez mais a saudade do que somos. Sem ela falta-nos futuro. Quem nos devolve Portugal?