Amizade

Entre tantas palavras escritas é aceitável dizer que fomos amigos? De maneira relativa, talvez! Afinal quando se fala de amizade de que se trata?

Não conheci pessoalmente o Arq.º José António Saraiva, ex-diretor do Expresso, fundador do semanário SOL, jornalista corajoso e lúcido que marcou a imprensa escrita nas últimas décadas, falecido há pouco mais de um mês. Nunca nos falámos, nem sequer por telefone, mas trocámos quase uma centena de emails ao longo de quinze anos. Entre tantas palavras escritas é aceitável dizer que fomos amigos? De maneira relativa, talvez! Afinal quando se fala de amizade de que se trata?


Corre vulgarmente uma suposta citação da Suma Teológica de Tomás de Aquino que define «os amigos como aqueles que querem as mesmas coisas e rejeitam as mesmas coisas», ou seja, seguem os mesmos caminhos sob os mesmos valores. Este critério por tão absoluto e uniformemente simplista perante a elaboração mental reconhecida ao santo filósofo tem toda a aparência, senão a certeza, de cópia artificiosa fora de contexto. Bastaria intrometer naquela afirmação de mesmidade coincidente entre amigos a diversidade ou oposição entre temperamentos e circunstâncias e logo o caldo facilmente se entornaria, adeus amizade com suas feridas e cicatrizes.

O mais próximo daquela frase talvez desviada está na questão 28, art.º 2 da dita Suma, na qual se consideram seus os bens e os males do amigo, ambas as vontades afetadas pelo mesmo bem ou mesmo mal sendo, por isso, «próprio dos amigos alegrarem-se e entristecerem-se com as mesmas coisas». Vê-se a diferença subtil, ou seja, há vidas autónomas e se a boa amizade impõe causa final comum não implica necessariamente igual causa formal e muito menos a eficiente, os amigos podem pelo caminho divergir em meios e modos para convergirem na mesma finalidade. Assim se percebem as palavras de São Paulo aos cristãos de Corinto: «Há diversidade de dons, mas o Espírito é o mesmo; há diversidade de serviços, mas o Senhor é o mesmo».


Na Ética a Nicómaco Aristóteles ensina a excelência do justo meio e a amizade ocupa, não por acaso, dois dos dez livros que formam a obra. No oitavo distingue três motivos que levam à amizade entre duas pessoas: a utilidade dos bens que possam resultar para ambos, o convívio deleitável e prazer mútuos e, finalmente, a amizade perfeita entre «homens de bem que são amigos dos outros pelo o que os outros são», ou seja, «querem para os amigos o bem que querem para si próprios». É fácil ver a utilidade na dúbia amizade dos negócios, o prazer na mutável amizade juvenil das paixões e, por fim, a amizade madura naqueles que se assemelham no respeito pelo Bem em excelência. Esta amizade é para poucos porque poucos são os que querem o Bem maior. Aqui, o filósofo acrescenta que nesta amizade, tão perfeita quanto rara, «é preciso tempo e cumplicidade» pois, diz o provérbio, «não é possível que duas pessoas se conheçam uma à outra sem terem comido juntas a mesma quantidade de sal». Esta foi a parte essencial que faltou na minha suposta amizade com José António Saraiva. Sem o sal fraterno à mesa e fora dela, sem o sal da vida que tempera gostos e desgostos não há amigos que se possam caldear no tempo e na cumplicidade. E confesso, tenho pena.


Semanalmente e ao longo de quase duas décadas li o SOL sempre a começar pelos dois textos de José António Saraiva: na Política a Sério o estilo era límpido e a direito, sóbrio e assertivo, no Viver para Contar havia ductilidade plástica em modo corrido saboreando a vida no desassombro nunca rendido ao politicamente correto. Era esta incorreção que me encantava polvilhando sal no insonso, pondo o dedo na ferida e disso os meus emails lhe davam conta. Este homem exerceu um quase solitário idealismo a que muitos chamarão quixotesco. Se um dia lessem o que diz Unamuno de Quixote talvez percebessem a idiotia de que padecem. Ao invés vi sempre em Saraiva respeito sadio pela realidade criadora que constitui o mundo, daí o seu amor pela verdade, a veneração pela liberdade, a sua e a dos outros. Quantos há por aí capazes de se apresentarem dignos e com rosto de coragem no portal eterno da morte, na Vida a Sério? Muito lamento o sal que não comemos juntos, rezo para que Deus o tenha.