Durante trezentos anos, um manuscrito intitulado “Uma Breve História dos Reis de Portugal” permaneceu intocado nos arquivos da Sociedade de Antiquários de Londres, até que os académicos Nuno Vila-Santa e Kate Lowe, das universidades de Lisboa e Londres, o reconheceram como um documento de grande importância histórica. Por meio de pesquisa minuciosa, eles estabeleceram que se trata da transcrição de um tratado datado de 1569/1573, escrito como um aide memoire para William Cecil (que mais tarde se tornaria Lord Burghley), que foi o mentor do Conselho Privado que assessorou a monarca Tudor Elizabeth I como Secretário de Estado dos Negócios Estrangeiros e, posteriormente, como Lorde Alto Tesoureiro.
O manuscrito é encadernado em pergaminho e consiste em doze páginas, dois fólios e uma pagina alargada que mostra em ordem cronológica a genealogia das famílias reais, de D. Afonso Henriques a D. Sebastião. As páginas apresentam marcas d’água inglesas e foram escritas em letra cursiva do século XVI por um copista profissional que adicionou entre parênteses um comentário que expande a narrativa. As margens são anotadas por Lord Burghley, em cuja extensa biblioteca o manuscrito foi mantido até 1687, quando foi vendido ao Conde de Stamford por dois xelins e oito pence. Também foram incluídas nessa venda obras de autores portugueses do século XVI, como Pedro Nunes, Jerônimo Osório e Damião de Gois. Estas testemunham o interesse político de Cecil em Portugal, que, naquela época, era considerado uma importante potência europeia e frequentemente chamado a arbitrar entre as facções conflitantes da Espanha, França e Inglaterra.
Os professores listam uma série de indícios que apontam para a probabilidade de o autor ser um comerciante inglês cujo negócio familiar estava estabelecido em Lisboa. É possível que ele ocupasse um cargo honorário na equipa do embaixador inglês e, como católico romano de língua portuguesa, tivesse acesso à alta sociedade da corte.
Para a primeira dinastia real, o manuscrito segue um formato histórico, apresentando uma breve sinopse do reinado de cada monarca, mas, após a ascensão do Rei João I e da Casa de Avis, apresenta muito mais detalhes, incluindo referências a indiscrições reais e intrigas da corte. Assim, tornou-se mais um documento de inteligência para que Lorde Burleigh pudesse ser informado sobre as consequências da aliança com a Inglaterra, estabelecida pelo Tratado de Windsor em 1386.
A estrutura desta Aliança foi testada durante a “Era dos Descobrimentos”, quando Portugal (e Espanha) defendeu uma política de Mare Clausum , segundo a qual teria jurisdição exclusiva sobre o Oceano Atlântico, que fazia fronteira com a maior parte da África Ocidental. Naturalmente, outras nações europeias, desejosas de participar do crescente comércio marítimo, contestaram essa posição, e seguiram-se vários confrontos marítimos entre as frotas mercantes portuguesas e os corsários.
Catarina da Áustria, regente de Portugal, instruiu o seu principal diplomata, João Pereira Dantas, a intervir nessas disputas. Após a rainha Isabel negar expressamente o monopólio português, Dantas enviou à corte Tudor, em 1561, um “espião” chamado Manuel de Araújo, que abriu caminho para a chegada de Dantas como embaixador. Ambos causaram boa impressão por sua diplomacia cortês, porém hábil. No entanto, a pilhagem da navegação mercantil continuou, e em 1564, Aires Cardoso foi enviado para registar uma queixa detalhada contra John Hawkins, cuja frota de corsários tinha causado graves perturbações ao comércio; especialmente com o lucrativo negócio de captura de escravos da Guiné, Senegal e Serra Leoa e seu embarque para a América Espanhola.
As discussões entre os conselheiros de ambos os países tornaram-se cada vez mais acaloradas e parecia possível que o Tratado fosse suspenso caso as escaramuças no mar se transformassem em uma declaração formal de guerra. Dois outros interlocutores foram enviados de Portugal (Manuel Álvares em 1567 e Francesco Giraldi em 1571) para apresentar sérias queixas de que o Estado de Direito Internacional havia sido perturbado pelos ataques dos corsários à navegação, mas sem sucesso. Em 1568, os portugueses ameaçaram entrar em guerra e, no ano seguinte, confiscaram as propriedades dos ingleses.
Um novo embaixador inglês, um diplomata competente chamado Thomas Wilson, foi enviado a Lisboa com instruções para enfrentar a tempestade de descontentamento negociando uma distribuição mais justa dos direitos de passagem e comércio. É bem possível que Cecil tenha incluído em suas instruções a exigência de encontrar um agente secreto que pudesse fornecer relatórios sobre a política real e informações sobre a força da frota mercante portuguesa e da marinha real. Parece que o autor anónimo do MS86 pode ter cumprido essa função, mas cópias originais de seus relatórios nunca foram encontradas.
O Academia.edu publicou o artigo escrito por Kate Lowe e Nuno Vila-Santa como um relatório das descobertas. Inclui uma transcrição, que utiliza a grafia do inglês do século XVI, incluindo os nomes dos monarcas, como John para João e Mary para Maria. É uma leitura interessante para aqueles tempos difíceis em que Portugal liderava a disputa para decidir quem deveria “dominar as ondas”.
Uma comparação interessante pode ser útil com a História de Portugal, escrita um século depois por Manuel de Faria e Sousa, um cavaleiro da Ordem de Cristo. Esta obra oferece um relato muito mais detalhado da época em Portugal durante a vida dos quinze reis que reinaram sobre Portugal em sucessão a D. Afonso Henriques e fornece muitos vislumbres de eventos sociais e económicos. Por exemplo, o manuscrito termina com apenas um breve relato de D. Sebastião, que ainda estava vivo quando foi escrito, mas Sousa se deleita em relatar os preparativos para a malfadada expedição a África, que resultou no jovem rei endividado com mercadores estrangeiros a uma taxa de juros relatada de 8%. Ele também acha necessário relatar os passeios noturnos do jovem rei com o seu pajem e outros jovens às praias e bosques para contemplação!
Os detalhes deste ensaio serão incluídos numa revisão da minha História das Alianças Anglo-Portuguesas, que será republicada no Outono de 2025.
Ilustrações :
Primeira página do manuscrito

Lord Burghley

Rei Sebastião

Caravela do século XVI
