A polémica alteração à Lei dos Solos aprovada após forte contestação pública trouxe a debate um tema estrutural para o futuro do país: como usamos o nosso solo e com que critérios? Este não é apenas um debate técnico. É um teste à nossa capacidade de proteger o território num tempo de crise climática, escassez de recursos e instabilidade geopolítica.
A forma como continuamos a permitir a reclassificação de solos rústicos para urbanos revela uma lógica insustentável de expansão territorial. A cada novo Plano Diretor Municipal, aumentam as pressões para converter áreas agrícolas em urbanizações, frequentemente sem ter em conta considerações estratégicas, sem provas de necessidade, e sem garantias de que os impactos serão minimizados.
Um dos principais ativos postos em risco é a Reserva Agrícola Nacional (RAN). Estas áreas representam o melhor solo para a produção alimentar nacional – e, por isso mesmo, deveriam ser tratadas como infraestrutura crítica. A sua preservação é uma condição essencial para a soberania alimentar, a mitigação de emissões e a adaptação às alterações climáticas. A guerra na Ucrânia, a seca prolongada no sul da Europa e a crescente volatilidade dos mercados internacionais de alimentos são alertas claros: não podemos continuar a sacrificar terra fértil por novas áreas urbanas de duvidosa necessidade.
A chamada ‘Lei dos Solos’, deve ser revista de forma estrutural por forma a garantir uma inversão de prioridades. Antes de qualquer reclassificação de solo, os municípios devem ser obrigados a provar:
- Que não existem solos urbanos disponíveis para construção, devidamente infra estruturados;
- Que foram contabilizados os fogos devolutos e os edifícios por reabilitar no território;
- Que a nova ocupação do solo é compatível com os princípios da mobilidade sustentável, da redução das emissões e da resiliência climática.
- Que em nenhuma circunstância pode ser classificado como urbano solo atualmente incluído na Reserva Agrícola Nacional.
É inaceitável que, em pleno século XXI, se continue a expandir a mancha urbana ignorando as infraestruturas existentes, as emissões associadas ao transporte individual e os custos ocultos para os serviços públicos. A dispersão urbana é incompatível com uma rede de mobilidade de baixo carbono. Quanto mais longe se constrói, mais dependência do automóvel se cria – e mais difícil se torna garantir transportes públicos eficientes.
A resposta à crise habitacional também não pode ser usada como justificação automática para mais expansão. É necessário recentrar a política urbana na regeneração dos centros históricos, na recuperação do património devoluto e na densificação qualificada com espaços verdes, proximidade de serviços e acesso a transporte coletivo. A contenção urbana é condição para a coesão territorial.
Portugal precisa de uma lei moderna, baseada na gestão eficiente do solo, no combate ao desperdício territorial e na proteção dos valores estratégicos do país. A preservação da RAN deve ser cláusula fundamental, e não exceção tolerada. A cada hectare de solo agrícola perdido, aumenta a nossa dependência externa e a nossa fragilidade perante as crises que se adensam.
A recente reversão da proposta governamental foi uma vitória do interesse público. Mas não basta evitar retrocessos: é preciso avançar com coragem. A nova Lei dos Solos tem que ser mais do que um regulamento técnico – deve ser um pilar da transição ecológica e da segurança nacional.
Associação Zero