O 10 de junho já não é nosso?

Estar enraizado, ser mais plenamente humano, depende de ter uma ligação real e ativa com o passado, ou seja, com a história e as tradições. Depende também de participar numa vida coletiva estável, como a família, a aldeia ou a nação, e de ter um papel com sentido na ordem do mundo, onde se reconhecem…

Causaram, e bem, polémica os discursos oficiais do 10 de Junho. Estes, embora politicamente irrelevantes, são exemplo de peças, ainda que menores e apenas reflexas, dessa ideologia dominante do desenraizamento e da desidentificação.

Simone Weil, uma das filósofas obrigatórias da contemporaneidade, afirmava que o enraizamento é uma das necessidades fundamentais da alma humana. Se a palavra “alma” causar confusão ao leitor, podemos substituí-la por “natureza” ou por aquilo que há de mais humano no homem. Só existe uma sociedade justa e decente quando se reconhecem as necessidades fundamentais da alma, entre as quais o enraizamento ocupa um lugar central.

O enraizamento significa ter laços profundos e estáveis com uma comunidade, uma história, um lugar e uma tradição. Implica uma ligação a algo que ultrapassa o indivíduo e lhe dá continuidade no tempo e no espaço. É isso que nos permite estar ligados e vinculados a algo maior, que dá sentido à nossa existência, que nos acolhe, ao qual pertencemos e pelo qual somos responsáveis, transmitindo o que nos foi legado. Esse fio condutor é dos mais nobres da humanidade e da civilização. Contrasta com a visão atomizada do ser humano, típica de muitos discursos contemporâneos, onde se assume que o mundo começa e termina na precariedade da individualidade finita.

É o desenraizamento a principal causa do sofrimento humano. O programa de obsolescência do modo de ser ocidental, como referia Bérénice Levet, esse trabalho metódico de desidentificação, é responsável por sociedades cada vez mais egoístas e mentalmente perturbadas. Quando não temos memória coletiva, vocação comum, tradições locais e raízes, agravam-se a nossa fragilidade e a facilidade com que nos tornamos manipuláveis.

Destruídos os alicerces que eram também resistências — como os valores, o nosso património ético-cultural, o sentido de comunidade, a importância dos laços e dos vínculos, a continuidade histórica e todos os processos identitários doadores de sentido —, viver o momento, o triunfo da subjetividade, viver apenas para nós, tornou-se a nova normalidade compreensiva. Como viver para os outros, ou para um Outro, se estes já não existem ou já não acreditamos neles? Quando o passado foi diabolizado e o futuro deixou de ter consistência, resta apenas o presente imediato e a satisfação do eu: viver o momento. Os laços são agora vistos como dependências e passam a ser administrados pelo Estado e pelas grandes corporações e por tudo o que estas representam. O narcisismo é a expressão psicológica dessa nova dependência.

Estar enraizado, ser mais plenamente humano, depende de ter uma ligação real e ativa com o passado, ou seja, com a história e as tradições. Depende também de participar numa vida coletiva estável, como a família, a aldeia ou a nação, e de ter um papel com sentido na ordem do mundo, onde se reconhecem o dever e a responsabilidade, para lá da simples satisfação individual.

Weil afirmava que, antes de se pensar em direitos, devemos pensar em deveres, especialmente nos deveres da sociedade para com o ser humano enquanto ser enraizado. A esfera política, como desenvolveria mais tarde Hannah Arendt, deve começar por reconhecer que existem obrigações incondicionais face ao ser humano. Uma dessas obrigações é precisamente garantir que cada um possa enraizar-se.

O progressismo fornece essa antropologia do homem vazio à máquina hiperliberal do consumo e da produção ilimitada. Por isso, o progressista é aquele que já não acredita em nada. O homem moderno é agora concebido como uma abstração, um ideal inexistente. O cidadão deu lugar ao consumidor atomizado, que é o resultado de um processo total e permanente de desenraizamento, desvinculação e desfiliamento. O homem contemporâneo, esse consumidor ideal revestido de um verniz de grande avanço civilizacional, é o homem sem identidade, seja ela sexual, cultural ou espiritual, o relativista, que apenas se rege pelo subjetivismo e pelo emotivismo.

O homem contemporâneo é fluído, indeterminado, ou seja, é nada. Já não temos um sexo definido: este é agora uma construção social. Já não há pai nem mãe, mas “progenitor um” e “progenitor dois”. A maternidade já não pertence à mulher, nem a paternidade ao homem. A nacionalidade é apenas um ato administrativo e burocrático: compra-se, adquire-se, como se fosse um objeto.

Christopher Lasch descreveu esta perda da dimensão humana, reduzida à sua expressão narcisista, como resultado do vazio espiritual causado pela erosão das referências comunitárias e familiares. Complementarmente, Alasdair MacIntyre, em After Virtue, advertia para a fragmentação moral do Ocidente, onde já não se sabe “quem” se é, nem “para que” se age. A identidade espiritual, seja a do indivíduo, seja a de um povo, desapareceu de quase todo o discurso político, apesar de ser um dos seus fundamentos.

A este diagnóstico junta-se Augusto Del Noce, que alertava para o surgimento de uma tecnocracia totalitária que, sob o pretexto da liberdade, promove a redução do homem à sua função económico-consumista. Por seu lado, Roger Scruton denunciava a substituição da pessoa por uma unidade funcional integrada num mercado global, onde já não se reconhecem nem herança nem vocação. Estes autores, cada um no seu quadro, convergem na mesma constatação: a desumanização operada por uma modernidade desidentificadora.

Mas a desidentificação e a destruição dos processos constitutivos e distintivos do ser humano devem ser consideradas nocivas, e até criminosas. São o nosso inimigo, o inimigo do humano. Pensemos: despersonalizar e desidentificar são típicos de qualquer processo carcerário totalitário. Quando já não somos nada, podem fazer de nós o que quiserem, inventar-nos uma história, uma identidade, uma paternidade falsas.

Hannah Arendt, ao analisar os regimes totalitários, identificava precisamente esta estratégia: a atomização dos indivíduos e a destruição das pertenças naturais, como a família, a religião ou a pátria, para que o Estado total se torne a única fonte de identidade. Um homem sem passado, sem nome e sem laços é o cidadão ideal do novo Leviatã tecnocrático.

Somos o consumidor ideal da grande máquina hiperliberal. E, como nos explicou George Orwell, agora “não ser é ser”, “escravidão é liberdade”.

Estas cerimónias do 10 de Junho não passam de minúsculas réplicas dessa ideologia da desidentificação. O Dia de Portugal tornou-se já uma data que celebra aquilo que já não se sabe exatamente o que é, ou por que razão o é.

O verdadeiro enraizamento é o inimigo do homem vazio e para este ideologia dominante. Quanto mais desenraizados mais manipuláveis somos. O novo processo consiste em associar tudo o que há de melhor no humano àquilo que se deve renegar: ser homem ou mulher, ter uma pátria, uma identidade espiritual, cultural e histórica, ter um passado, uma família, um nome.

Tudo isto deve ser arrasado no supermercado global e no manicómio mundial, para que se construa o escravo perfeito: atomizado, amnésico, maleável, hipermóvel, sem memória nem horizonte. Um servo feliz, vazio, pronto a consumir tudo o que o sistema desejar que ele seja.

Odiar o pai, a mãe, a nossa religião e cultura, os nossos heróis, a nossa história, é o grande lema do consumidor ideal.

Atenção: não se trata de versões idílicas ou laudatórias da nossa identidade. Não há anjos nem paraísos sem mácula na história humana. Mas o homem que cresce sem uma identidade espiritual, cultural, religiosa, geográfica e histórica é como uma criança que cresce sem pai, sem mãe, sem referências, apenas no imenso centro comercial.

Sim, devemos aspirar ao universal. Mas não a esse universalismo abstrato e desencarnado, que nada partilha com a realidade viva das culturas e das raízes. A verdadeira universalidade nasce do concreto, das identidades, da história, da tradição. Impelir-nos a abandonar tudo isso, em nome de uma ideia vazia de universal, é, na prática, pedir-nos que deixemos de ser. E isso é tão grave como falsificar a nossa própria história”.