O cama 11

Quando desta vez foi internado ninguém lhe perguntou o nome nem como gostaria de ser tratado. Apercebeu-se bem cedo que deixou rapidamente de ser o Eng. Alberto Silva ou mesmo o senhor Silva para se tornar simplesmente no cama 11.

O senhor Alberto Silva tinha setenta e dois anos quando foi de novo internado no hospital. Engenheiro Civil de profissão, tinha uma doença crónica que o levava frequentemente a um internamento hospitalar. Mas, nas suas múltiplas estadias anteriores, nunca tinha passado por situações como a que estava agora a viver naquela enfermaria. Quando desta vez foi internado ninguém lhe perguntou o nome nem como gostaria de ser tratado. Apercebeu-se bem cedo que deixou rapidamente de ser o Eng. Alberto Silva ou mesmo o senhor Silva para se tornar simplesmente no cama 11. Era assim que os enfermeiros se referiam a ele quando passavam no corredor – já vieram as análises do cama 11?

Era esse o número que constava na cabeceira da sua cama, e era assim que ouvia o “seu nome” ser murmurado durante as mudanças de turno. A sua existência havia pois sido reduzida a um número de cama, a sua identidade humana arquivada algures nos formulários burocráticos do hospital.

Aquela enfermaria era um microcosmo de doenças e de sofrimento onde a dignidade parecia ter sido esquecida à porta. E Alberto Silva observava, com crescente desconforto, como os outros doentes eram também tratados da mesma forma impessoal. Na cama do lado estava um homem, também ele velho, e de quem nunca soube o verdadeiro nome, mas que para alguns daqueles médicos era simplesmente o cancro do pâncreas que amanhã vai fazer TAC. Era assim que os ouviu referirem-se a ele nas conversas com colegas, como se a patologia tivesse engolido completamente a pessoa. Era perturbador testemunhar como uma doença grave se havia tornado na única identidade que restava àquele homem.

Com o passar dos dias começou a dar-se conta que havia também outras formas desajustadas de lidar com os doentes. Algumas auxiliares de ação médica usavam expressões infantilizantes quando se dirigiam aos doentes mais idosos: Então, querido, como passou a noite? Vamos lá, amor, precisa de tomar os medicamentos, diziam em tom meloso, como se estivessem a falar com uma criança pequena, ignorando completamente a respeitabilidade e uma maturidade com décadas de experiência.

A forma como se dirigiam aos doentes era totalmente inadequada. Os mais idosos não são nem queridos nem amores – são seres humanos adultos, com nomes próprios, com as suas histórias de vida, famílias e sonhos interrompidos pela doença. O tom condescendente daquelas profissionais transformava os doentes numa espécie de animais de estimação, retirando-lhe as últimas parcelas de dignidade que as doenças ainda não tinham conseguido roubar.

O senhor Alberto Silva reparava em tudo isto, e experimentava uma mistura de sentimentos de indignação e tristeza. Naquele hospital onde tudo até poderia funcionar como numa máquina eficiente, tratando corpos doentes com alta qualidade técnica, não havia “espaço” para a valorização da alma humana que habitava cada um desses corpos doentes. A cada doente era ali atribuída uma etiqueta, um número, uma patologia (cama 11, cancro do pâncreas, etc.) que o coisificava, despojando-o da sua identidade mais fundamental: ser reconhecido como uma pessoa.

A forma como nos dirigimos aos doentes internados constitui um pilar essencial na humanização dos cuidados num hospital. O tratamento pelo nome que desejam ser tratados representa mais do que uma mera cortesia, é um ato de reconhecimento da pessoa na sua totalidade, transcendendo a sua condição de doente e abraçando a sua identidade única e individual.

Trata-se de uma prática simples, mas profundamente significativa, que transmite o respeito, o reconhecimento e a dignidade que é devida a cada pessoa. Alguns doentes podem preferir ser tratados de forma mais formal enquanto outros podem sentir-se mais confortáveis com uma abordagem menos cerimoniosa. É pois essencial que esta abordagem seja feita com sensibilidade cultural e consideração pelas preferências individuais.

A humanização dos cuidados de saúde não é um luxo ou uma opção. É uma necessidade fundamental que beneficia doentes, profissionais e o sistema de saúde como um todo, contribuindo para melhores resultados clínicos e maior satisfação profissional.

Referências:
Compromisso para a Humanização Hospitalar, SNS, 2019
Claude AI (2025)

Médico. Movimento Cívico Humanizar a Saúde Coimbra