Falamos muito de democracia por tudo e por nada. O debate político parece definir-se entre os que se proclamam democratas e os que eles designam como anti-democratas, os que colocariam a democracia em perigo. Intitulamo-nos democratas e acusamos os outros de não o serem, o que os desqualifica de imediato: nas suas opiniões, nos seus comportamentos ou decisões. Falta, porém, o essencial. Acusar os adversários de anti-democratas serve muitas vezes de espantalho para escamotear o fundamental, que é o questionamento da qualidade da democracia atual e, mais ainda, do seu verdadeiro sentido.
Importa recordar o que é distintivo na democracia para além da retórica e dos dogmas repetidos por uma espécie de proprietários autoproclamados da sua definição. A democracia só existe quando estamos perante o governo do povo, para o povo e pelo povo. Ou seja, assenta numa ideia de igualdade radical na participação política. Qual é, então, a qualidade da nossa democracia à luz deste critério? Débil. Muito débil. Dificilmente vivemos em democracia. Ou, na melhor das hipóteses, vivemos numa democracia de segunda ou terceira categoria.
Num sistema verdadeiramente democrático, a igualdade radical pressupõe que todos podem governar. Os que não têm poder devem, em princípio, ter tanto poder como os que o detêm, seja ele económico, social, estatutário ou intelectual. A ideia de que qualquer um pode governar coloca o conceito de igualdade num outro patamar: pressupõe a capacitação de qualquer cidadão para exercer um cargo político, para ser político, mesmo de modo oficial. A criação dos partidos e o modo como estes validam o que pode ser dito e onde pode ser dito, bem como as consequências de tomar a palavra, são inimigos dessa igualdade radical necessária para uma democracia plena. Esta igualdade não é uma utopia. Remete para um patamar elevado de exigência: a importância igual de cada ser humano. E essa importância implica que todos tenham a possibilidade de aprender, exercitar e desenvolver a capacidade crítica, a educação, a consciência ética e o conhecimento suficiente para, num determinado momento, assumir o seu lugar na pólis.
A representação política através de partidos e a figura do político profissional constituem, neste sentido, uma desqualificação da democracia. São o sintoma de uma inferioridade democrática e o sinal de um sequestro do significado essencial da soberania popular. O que temos é, em grande medida, uma democracia delegada, tutelada, secundária.
Jacques Rancière, na sua obra O Ódio à Democracia, oferece uma chave importante para este debate. Segundo ele, a democracia vive da possibilidade de manifestação do poder por parte de quem não tem poder. Nesta aceção, a democracia não é uma forma de governo estável, mas uma prática intermitente que emerge da irrupção da igualdade no campo político. É o poder de qualquer um, inclusive de quem não é considerado “qualificado” para governar, segundo os critérios da ordem instituída.
Vivemos, por isso, num tempo profundamente antidemocrático no Ocidente. O poder dominante estabelece cordões sanitários, traça linhas vermelhas, tenta silenciar quem ousa querer tomar a palavra e participar da decisão. A democracia só existe quando há lugar ao dissenso. Quando se rompe com as hierarquias sociais, técnicas ou naturais que procuram determinar quem tem direito de falar, pensar e decidir. As eleições, a separação de poderes, a representatividade ou o primado da lei têm, neste quadro, muito menos relevância do que se pensa. Não é a engrenagem institucional que garante a democracia. É a possibilidade real de tomar a palavra, dizer não, contrariar o consenso, interromper a ordem estabelecida. O direito à oposição é, antes de tudo, a exigência da igualdade. Negá-lo, seja pela desqualificação, pela desvalorização ou pelo silenciamento, é negar a própria democracia.
As formas institucionais e a ritualística que se convencionou considerar “democráticas” funcionam, em larga medida, como mecanismos de domesticação. A soberania popular é minada por esse aparato simbólico: o partido, a tomada de posse, as regras parlamentares, a retórica da separação de poderes, o fetichismo da representatividade. Tudo isso serve, demasiadas vezes, para ocultar a ausência de verdadeira participação. Vivemos, mais propriamente, num estado de polícia do que num estado de política.
Rancière distingue claramente os dois. A “polícia” é a ordem que distribui lugares e funções, que define quem manda e quem obedece, quem fala e quem é ignorado. A política, por contraste, emerge quando essa ordem é interrompida por aqueles que afirmam um direito à palavra e à ação que lhes é sistematicamente negado. É aí que começa a democracia verdadeira, não nos mecanismos de gestão do consenso, mas na rutura que dá voz ao excluído.
Os que se apressam a rotular como “extremismo de direita” todo o dissenso que não se submete à ordem dominante, partidos políticos, media, intelectuais, figuras públicas, são, eles sim, os verdadeiros antidemocratas. São o sintoma evidente da degradação da democracia. Demonizar, silenciar ou até criminalizar o indivíduo e a oposição que não se deixam subjugar não é um ato de defesa da democracia. É um gesto profundamente antidemocrático. A verdadeira ameaça não é o dissenso. É o medo da igualdade, o medo da crítica e da alternativa. Quando ouvimos elites políticas e intelectuais dizerem que “a democracia está em risco”, devemos perguntar-nos: não estarão antes a desenvolver um novo discurso do ódio à democracia, precisamente em nome da sua defesa?
As teses sobre a degradação da democracia são, frequentemente, tentativas de desqualificar a própria lógica igualitária da democracia, reduzindo-a a um conjunto de procedimentos institucionais geridos por especialistas e protegidos do povo. Discordo, no entanto, de Rancière quanto ao ponto de partida. A igualdade que predispõe qualquer um para o poder, até o poder dos que não têm poder, exige uma preparação prévia. Essa é a obrigação primordial das democracias e de um bom Estado: educar eticamente e politicamente os indivíduos, capacitá-los para a liberdade, formar a sua autonomia e a sua soberania pessoal. A igualdade não é um dado natural. É uma conquista. É uma construção política e social que prepara o indivíduo para se tornar sujeito. E é a partir dessa preparação que, pelo mérito, pelo esforço e pela capacidade, cada um se distingue e assume responsabilidade.
Mas o que vemos hoje é precisamente o contrário. Os defensores mais ruidosos da democracia são, em muitos casos, os seus mais eficazes detratores. Uns por ignorância, outros por cálculo estratégico, iludem o facto de que não vivemos numa democracia efetiva. O parlamentarismo, o partidarismo, a tecnocracia e a alternância de partidos essencialmente idênticos implicam um tipo de consenso que exclui o dissenso verdadeiro e reprime o aparecimento do povo como sujeito político. Todo o dissenso é o espaço pleno da democracia, o que implica as boas e as más ideias, as geniais e as intoleráveis. O discurso obsessivo contra o fascismo, o extremismo de direita, as fake news, o populismo ou o discurso do ódio serve, sobretudo, para neutralizar a possibilidade democrática radical, reduzindo a política a uma gestão consensual dos interesses do capital.
Quando assistimos na televisão à alternância dos mesmos comentadores, às escolhas sem alternativas, à liberdade da escolha única, devemos interrogar-nos. Não estará o verdadeiro ódio à democracia precisamente nos que se dizem seus guardiões? Ao impedirem o conteúdo político real da democracia, reduzem-na a uma fachada institucional.
O que assistimos nas últimas décadas no Ocidente foi a uma elitização da política. Mas de elites, muitas vezes, medíocres. A sua articulação com oligarquias económicas e financeiras que não se movem pelo bem-estar das comunidades compromete ainda mais a legitimidade do sistema. Recuperar o poder dos que não têm poder, dar voz aos “muitos”, mas articulando-os com os “poucos”, mas os seus melhores, é a chave para o regresso da democracia. Não se trata de dissolver a autoridade dos competentes, mas de garantir que os competentes não se separem do comum. Nem todos têm a mesma capacidade e aptidão. Na verdade, somos diferentes. Mas essa diferença, no plano político, pode ser canalizada para uma mediação que implique a melhor participação de todos com igual importância.
É preciso romper o véu dos que, odiando a democracia, dizem ser seus defensores. Porque não há democracia sem povo. E se os “poucos”, as elites — mas as verdadeiramente capazes e que se distinguem pela prática e pelos resultados — são importantes, os “muitos” têm de participar com igual relevância no exercício do poder. Só assim a democracia deixa de ser um slogan e volta a ser um ato real de soberania partilhada.