A autonomia, o incesto e o progressismo

Se já não sabemos por que algo é errado, talvez o erro esteja em tudo o resto que aceitámos sem perceber

Vamos testar a ideia progressista segundo a qual a liberdade individual deve ser ilimitada, desde que não cause dano a outrem e haja mútuo consentimento. Quando se junta a esta lógica a noção de que a lei substitui a ética, obtém-se a visão dominante sobre os comportamentos humanos no nosso tempo.

Em 2025, em Celorico de Basto, o registo civil autorizou o casamento de uma filha de 68 anos com o pai, de 95. Sim, leu bem. A razão foi económica, mas esse facto é lateral. O episódio levanta uma questão maior. Não é apenas jurídica. O que é que ainda nos indigna? E essa indignação baseia-se em quê?

Vivemos num tempo em que quase tudo foi declarado ‘válido’. Em alguns países, pode-se abortar até ao nono mês. Há quem se mutile cirurgicamente para afirmar um género que não existe no corpo. Em breve, poderemos fabricar seres humanos a partir de células da pele e até produzir óvulos masculinos. Há quem se identifique como animal ou personagem de ficção. Casamentos múltiplos, homens de grinalda, mulheres com pénis, mães de aluguer, filhos do Estado. Tudo é permitido e celebrado, desde que reforce a narrativa dominante.

Então, por que razão não se pode casar com o pai, se ambos são adultos conscientes? E não venham com o argumento da reprodução. Ninguém está a falar de filhos. O que torna esse contrato mais ‘grave’ do que um homem que se declara grávido ou uma mulher binária com três parceiros e um filho partilhado?

Dirão que o incesto é ‘repugnante’. Mas desde quando o desconforto subjetivo serve de critério moral? A ideologia dominante permite – e até exalta os exemplos mais extremos da autodeterminação individual, mas recusa este. Porquê? Note-se que esta provocação não visa defender tal união, mas apenas testar a coerência lógica do princípio da autodeterminação absoluta.

A resposta, por mais incómoda que seja, é simples: já não existe um critério moral coerente. A moral progressista baseia-se hoje em reações emocionais, modas culturais e algoritmos mediáticos. Já não é a razão que define o certo e o errado, mas sim a tendência. O que ontem era opressão, hoje é celebração. O que hoje é transgressão, amanhã será imposição.

Celebramos o poliamor e a identidade como performance, mas reagimos com horror a certos casos ‘disfuncionais’ que são, afinal, a consequência lógica da mesma ideia-matriz: a liberdade total de redefinir tudo.

Se posso redefinir o meu corpo, o meu género, o meu nome, a minha parentalidade e a minha identidade, por que não os limites do casamento? Qual é, afinal, a base racional para proibir o incesto entre adultos conscientes, se todas as outras fronteiras já foram dissolvidas?

Dir-se-á que a lei precisa de limites. Mas quem os traça? E com que critério? Ordem pública? Tradição? Natureza humana? Todas essas referências foram abandonadas pelo mesmo discurso que agora hesita. Resta o gosto do momento, o veto sentimental, a moral do trending topic. Matou-se até a possibilidade de um fundamento ético objetivo.

A pergunta incomoda. Mas deveria incomodar ainda mais o silêncio que a rodeia. Se a única resposta é ‘isso não’, sem sabermos porquê, então o problema não está no caso de Celorico de Basto. Está em tudo o que deixámos de pensar antes de permitir.

Porque se já não sabemos por que algo é errado, talvez o erro esteja em tudo o resto que aceitámos sem perceber. E se perdemos a capacidade de traçar uma linha, é porque já não sabemos onde começa o humano nem onde acaba a civilização