É inegável: a inteligência artificial entrou de vez no nosso quotidiano. Está nos telemóveis, nas redes sociais, nos automóveis – e, cada vez mais, nas galerias e museus. A arte, território que sempre vimos como exclusivamente humano, já não escapa a esta revolução.
Foi no MoMA, em Nova Iorque, há dois anos, que vi pela primeira vez uma criação de Refik Anadol, artista turco-americano nascido em 1985, reconhecido por transformar dados e algoritmos em instalações visuais que têm conquistado museus e galerias por todo o mundo. A obra em questão, Unsupervised – Machine Hallucinations (na imagem), é uma instalação de paisagens digitais que, em tempo real, gera formas inéditas e em constante metamorfose – como se desse corpo aos sonhos de uma máquina depois de processar mais de 200 anos de arte da coleção do museu. Para criar estas imagens, Anadol recorre a redes generativas adversariais (GANs), uma tecnologia baseada no confronto entre dois algoritmos. Um gera imagens a partir dos dados do acervo da instituição; o outro avalia se parecem reais. Desse jogo de tentativa e erro nascem composições visuais cada vez mais complexas e detalhadas. «Procuro encontrar formas de ligar memórias ao futuro» e «tornar o invisível visível», explica o artista.
A sua criação mais recente, Living Memory: Messi – A Goal in Life foi apresentada na Christie’s, em Nova Iorque, e leiloada online esta semana (escrevo antes de conhecido o resultado). Inspirada no lendário golo de cabeça de Lionel Messi contra o Manchester United, na final da Liga dos Campeões da UEFA de 2009, esta instalação imersiva combina dados do jogo, sinais biométricos e representações visuais da emoção coletiva daquele instante. Segundo a leiloeira, o público é convidado a mergulhar na intensidade do lance, revivendo um dos momentos mais icónicos da história do futebol. Com uma base de licitação de 1,5 milhões de dólares, a venda reverterá para várias organizações sem fins lucrativos, incluindo a parceria da Inter Miami CF Foundation – clube onde Messi joga atualmente – com a UNICEF, que apoia programas educativos em cinco países da América Latina e das Caraíbas.
Ainda assim, não faltam vozes a defender que a criação artística deve continuar a ser uma expressão exclusivamente humana – uma das características que, dizem, nos distingue dos outros animais. A discussão não é nova: quando, em 1917, Marcel Duchamp propôs que um urinol fosse considerado arte e o apresentou em Nova Iorque com o título Fontaine, argumentando que qualquer objeto podia ser arte se escolhido pelo artista, chocou o mundo. Décadas depois, My Bed, a cama desarrumada de Tracey Emin, exibida na Tate Gallery em 1999, gerou igualmente polémica, antes de ser vendida por mais de 2,5 milhões de libras na Christie’s. E, em 2018, Girl with Balloon, de Banksy, foi parcialmente destruída no momento em que era arrematada por mais de um milhão de libras na Sotheby’s. Hoje, a controvérsia recai sobre a famosa banana de Maurizio Cattelan, exposta no Museu de Serralves até janeiro de 2026, cuja ‘versão’ do Centro Pompidou-Metz, em França, foi recentemente comida por um visitante.
As criações de Anadol desafiam a ideia tradicional de criatividade e colocam em causa até que ponto a autoria pode ser atribuída à tecnologia. Tal como Duchamp, Emin ou Banksy, o artista turco-americano expande a noção de arte e desafia o público a repensar os seus limites. No MoMA, éramos dezenas de pessoas hipnotizadas pelo fluxo contínuo de imagens em mutação, cada uma delas uma composição irrepetível. Fica, no entanto, a dúvida: estaremos dispostos a deixar que, no futuro, sejam as máquinas a decidir o que é – ou não – arte? Químico