O pivot dos EUA para o Pacífico, para a contenção da China, até ao inevitável conflito, começou há muito e foi abertamente assumido, por Hillary Clinton, durante a primeira presidência de Obama. Os caprichos neo-imperiais de Putin são um mero adiamento da inevitável irrelevância da Europa. Ao querer reconstruir a dimensão imperial da Rússia, Putin conseguiu transformá-la num estado cliente da China. A prova? Bastava que Pequim deixasse de comprar o gás natural e o petróleo russos para que a guerra na Ucrânia acabasse e Putin fosse defenestrado do Kremlin. Porque é que tal não acontece? Porque não há nada com que os EUA possam ameaçar a China ou que lhe possam dar que tenha mais valor do que o manter os EUA distraidamente entretidos com a gestão da fronteira ocidental da Rússia. A segunda eleição de Trump tinha como propósito manter os EUA longe das forever wars. Esta semana o comentariado internacional, interpretando os dizeres de Trump, declarou que a da Ucrânia é a sua guerra. Pequim sorri.
Menos sorridentes estão vários dos Estados que em 1945 re-descobriram vizinhos difíceis ou aqueles (nalguns casos os mesmos) que passaram, velozmente, uma serrapilheira molhada pelo quadro negro da sua participação na segunda guerra mundial. Pela Europa a neutralidade foi um valor em alta nos últimos 77 anos. A invasão russa da Ucrânia atirou rapidamente Finlândia e Suécia (por esta ordem, por descortesia de Erdogan) para os braços da NATO. A neutralidade da Finlândia teve, de 1948 a 1992, uma base jurídica, assente no Acordo de amizade, cooperação e assistência mútua com a URSS, com obrigações partilhadas de defesa contra a “Alemanha e os seus aliados”. A expressão finlandização cobre a realidade de uma perda efectiva de soberania de um Estado face a um vizinho poderoso e foi equacionada noutras geografias (Japão, Coreia do Sul, Alemanha em caso de abandono pelos EUA, Estados do Pacto de Varsóvia depois da queda da URSS, Ucrânia pós-2022). A finlandização permitiu também o reforço do comércio entre os dois blocos, mais fácil e mais discreto nas latitudes elevadas.
Já a neutralidade sueca foi auto-imposta, como consequência da perda do império pelo envolvimento nas guerras napoleónicas. Serviu também para atenuar a proximidade em relação ao III Reich. Com a adesão à União Europeia, Helsínquia e Estocolmo integraram a Política Comum de Segurança e Defesa e celebraram acordos bilaterais em matéria de defesa. Os dois optaram sempre por uma neutralidade fortemente armada.
A par da neutralidade também se encontram casos históricos de desmilitarização de uma parte ou da totalidade do território. O Tratado de Versalhes foi pródigo em soluções de desmilitarização. A neutralidade também pode ser imposta por convenções internacionais, como aconteceu com a Áustria por via do Tratado de Estado de 1955 que pôs fim a 10 anos de ocupação pelos EUA, URSS, Reino Unido e França. Fazendo da necessidade virtude, o Parlamento austríaco declarou em 1955 a neutralidade permanente, a que se juntou a Opferthese, segundo a qual a Áustria teria sido a primeira vítima do nazismo.
Na UE há mais dois Estados que, de forma voluntária, se proclamaram neutrais, na versão pouco armada: Irlanda e Malta. Fora da UE mas, respectivamente, no Espaço Económico Europeu e na lista dos candidatos à adesão, há mais três Estados que se declaram neutrais: Suíça, Moldávia e Sérvia.
Assistimos ao abandono da neutralidade (Finlândia, Suécia), à discussão política sobre essa possibilidade (Áustria) e a propostas de novos regimes convencionais internacionais de neutralidade ou de desmilitarização (para a fronteira russo-ucraniana), com ou sem a intervenção do Conselho de Segurança da ONU.