Muitos dos desenhos e gravuras de realidades impossíveis e paradoxais do artista holandês Maurits Cornelis Escher (1898-1972) convidam o observador a seguir percursos visuais que parecem lógicos à primeira vista, mas que acabam por conduzir a lado nenhum ou a algo totalmente inesperado. Entre os exemplos mais icónicos contam-se as escadas que simultaneamente sobem e descem, as quedas de água que desafiam as leis da física, o cubo impossível (na imagem) e os bandos de aves que se transformam em cardumes de peixes.
À semelhança dos mundos paradoxais de Escher, que nos obrigam a rever o que julgamos ver, também a ciência, no seu esforço por compreender o Universo, pode desconcertar ao revelar realidades antes inimagináveis. Vem isto a propósito do facto de, recentemente, ter sido obtido o N6, uma nova forma molecular de nitrogénio, o elemento que, sob a forma de pares de átomos (N2, o chamado dinitrogénio), constitui 78% do volume do ar atmosférico. Até agora, com exceção do N4, detetado em 2002, mas cuja estrutura não foi determinada, não se conhecia qualquer outra molécula composta exclusivamente por átomos deste elemento. O N6 (hexanitrogénio) já tinha sido previsto teoricamente, presumindo-se que, a existir, tivesse a forma de um anel hexagonal. A ciência acaba, no entanto, de revelar o contrário: a estrutura do N6 é linear: N=N=N-N=N=N.
Descoberto e isolado pela primeira vez, em 1772, pelo médico e químico escocês Daniel Rutherford, o N2 foi apelidado de «ar nocivo», por ser asfixiante e não suportar as combustões. Atravessa-se então um período (c. 1750-1800) em que muitos novos «ares» – nome dado na época aos gases – foram identificados, como o dióxido de carbono, o hidrogénio e o oxigénio, entre outros, dando origem à chamada «química pneumática», hoje considerada um capítulo fundamental da história da química moderna. O termo «gás» – cunhado no início do século XVII pelo alquimista e precursor da química flamengo Jan Baptist van Helmont, a partir do grego chaos, conceito alusivo ao «vazio primordial» – só se consolidaria mais tarde. A designação «nitrogénio» foi proposta pelo químico francês Jean-Antoine Chaptal, em 1790, devido à presença do elemento no ácido nítrico e nos nitratos. Por sua vez, o seu compatriota Antoine Lavoisier chamou-lhe «azoto», termo derivado do grego azōtikós, que significa «não vital».
Em junho passado, 253 anos após a descoberta do N2, uma equipa de químicos liderada por Peter Schreiner, da Universidade de Giessen (Alemanha), anunciou a síntese do N6 – a substância mais energética conhecida até hoje – num artigo publicado na prestigiada revista Nature. Muitos grupos tentaram produzir esta molécula, contando, no caso dos EUA, com apoio de entidades como os Departamentos de Energia e Defesa, bem como da NASA. As substâncias formadas exclusivamente por nitrogénio são altamente atrativas, pois não só armazenam grandes quantidades de energia como também são amigas do ambiente, já que, ao libertá-la, produzem apenas N2.
Especializado em química orgânica física, Schreiner dedicou-se durante anos ao estudo de compostos de carbono e hidrogénio. Contudo, como referiu ao Basler Zeitung, principal jornal de Basileia, «é preciso reinventarmo-nos de vez em quando, olhar para os lados e ver as ‘rosas à beira do caminho’ que ainda não cheirámos». Foi essa mudança de perspetiva que o levou a explorar o nitrogénio, pensando, porém, ‘fora da caixa’. Partindo do ião azida (N3⁻) e seguindo o que, eufemisticamente, descreve como «uma química quase da Idade da Pedra» –, alcançou, com a sua equipa, o que muitos julgavam irrealizável. O investigador, que nota que, por vezes, «as coisas mais simples são as mais difíceis de ver», acredita que o próximo passo poderá ser a síntese do N10 – um átomo de nitrogénio central com três trios em seu redor.
Para além de excelente combustível para foguetes, o N6 promete também ser um poderoso explosivo (armazena o dobro da energia do TNT). Quanto a usos indevidos da descoberta, Schreiner considera que «a transparência é a melhor proteção», acrescentando que «se todos souberem como produzir a molécula, nenhum agente beneficiará em exclusivo dessa informação». Já há quem diga que o achado é digno do Prémio Nobel, galardão que, curiosamente foi instituído pelo químico e engenheiro sueco Alfred Nobel, com base na fortuna obtida com a invenção da dinamite, em 1866.
Tal como outros cientistas notáveis, Schreiner também é músico, circunstância que, se conhecida pelos autores à data da escrita, decerto lhe teria garantido uma menção em A Harmonia das Esferas – Música, Ciência e os Mistérios do Universo