Não nasceu para ser músico. Não tinha a voz, costumava dizer. Mas pegou em grãos de areia espalhados pelo país e transformou-os em pérolas icónicas da música portuguesa. É mesmo quase impossível não encontrar um artista lendário em Portugal que não tenha tido um empurrão, ou um pequeno toque, seu. E isso bastava.
O produtor discográfico Mário Martins deixou-nos no dia 14 deste mês, numa unidade hospitalar em Lisboa, aos 90 anos, disse à agência Lusa fonte da Casa do Artista, onde residia. Dizia-se, numa entrevista à Antena 1, «tímido, tímido como um bicho-careto». Mas os tímidos, os observadores, sensíveis e atentos, por vezes miram e acertam onde mais ninguém consegue acertar.
Mário Martins era um navegador musical: foi do fado ao rock, do mainstream ao mais diferente que havia, até passou pelos surrealistas, numa série de gravações discográficas de poesia portuguesa, que contou, entre outros, com a contribuição de Mário Cesariny.
Construiu uma carreira sólida, genuína, com vida própria, e mostrou aos portugueses muitas das vozes que marcariam, e continuarão a marcar, a música portuguesa para sempre.
Nasceu em Lisboa, em 1934, numa rua «pobrezinha, onde toda a gente andava descalça», contou na mesma entrevista. Como é que este pobrezinho das ruas de Lisboa acabou na música? «Não sei. Estava sempre a cantar, a assobiar. E o meu pai mandava-me calar. Ia para o Coliseu de gatas e a agarrado às grades para ouvir aquilo». Chegou a pedir um piano ao pai, porque gostava muito de música. O problema é que viviam num sítio pequeno, atrás de uma mercearia: não havia espaço para pianos e para músicas e cantarolas. Chegou a tirar um curso comercial e aos 15 anos já andava com as mãos na massa, no setor dos vinhos. Mas tudo muda, e com a mudança vieram os instrumentos, as vozes, as cantigas, a arte. Com ela também veio a felicidade, o sonho de criança, a música.
Nomes? Há muitos
«A gente que eu descobri foi muita. Não vamos enumerar quantos, foram muitos. Todos eles ou fizeram carreira ou foram muito felizes na carreira que tinham. E eu fiquei muito contente», chegou a comentar, numa outra entrevista, à SIC, quando já se encontrava a viver na Casa do Artista.
A verdade é que são mesmo muitos. Mário Martins foi o combustível que alimentou nomes como Marco Paulo, Luís Goes, Fafá de Belém, Nuno da Câmara Pereira, Paco Bandeira, Carlos Paião, José Cid, Júlio Pereira, Jorge Palma, Grupo de Cantares de Manhouce, Alexandra, José da Câmara, Maria Teresa de Noronha e Lucília do Carmo, entre outros. Destaca-se, por exemplo, a inigualável Amália Rodrigues.
O produtor foi responsável pelo departamento de Artistas e Reportório (A&R) da conhecida editora discográfica Valentim de Carvalho, durante 30 anos, na qual começou a trabalhar em 1966, a convite de João Belchior Viegas, agente artístico de Amália Rodrigues, e do qual viria a ser companheiro de trabalho e amigo. Mário Martins foi o nome responsável pela gravação do tema ‘O Senhor Extraterrestre’, de Carlos Paião (1957-1988), artista que passou a constar do catálogo da editora em 1982. O mais engraçado da sua relação de trabalho com Amália é mesmo a sua admiração e timidez para com a maior cantora de Portugal: chegou a escrever um poema para a fadista cantar, mas a vergonha ganhou à poesia. «Tive vergonha em mostrar à Amália, ela cantava David Mourão-Ferreira, Pedro Homem de Mello, Alexandre O’Neill, e quem eu era ao pé destes grandes poetas? Ninguém», chegou a dizer, numa outra entrevista à agência Lusa. O poema acabou por ser interpretado e gravado por Beatriz da Conceição, em 1967. O próprio António Variações foi apresentado a Mário Martins por Maria Elisa, de quem o produtor gostou muito, não porque Variações tinha uma voz poderosa ou incrivelmente dotada, mas porque era uma voz com história, diferente, com um estilo próprio. «Antes de ser o António Variações que conhecemos, ele já era diferente das outras pessoas. Ele arranjava cabelos e cantarolava. A voz do Variações tem as origens das vozes minhotas. E essas conheço eu bem, porque o meu pai era minhoto. Foi a pessoa mais tímida que eu encontrei, eu que sou tímido». Foi também responsável por alguns dos grandes êxitos de Marco Paulo, que nos deixou o ano passado, como ‘Eu Tenho Dois Amores’ (António José/Georges Hatzinassios).
A carreira na Valentim de Carvalho foi longa e histórica para a música portuguesa. Mário Martins deixou-a só em 1993, quando foi para a Movieplay Portuguesa, onde coordenou a série O Melhor dos Melhores (1994), que reuniu êxitos de cerca de 100 artistas nacionais. Também chegou a trabalhar em televisão, tendo colaborado com a Teresa Guilherme, na RTP, e com José Nuno Martins, para fazer um programa de sua autoria na RTP. Foi ainda apresentador do programa Fado Fadinho (1993), pelo qual recebeu um Prémio Bordalo, na TVI.
O Presidente da República enviou condolências à família do produtor discográfico. Numa nota publicada no site da Presidência da República, Marcelo Rebelo de Sousa refere-se a Mário Martins como uma «referência fundamental» da música nacional. «Dizer apenas que produziu discos de José Cid, Marco Paulo, Carlos Paião ou Rui Veloso é pouco: foi coautor, cúmplice e amigo destes e de outros músicos, incluindo Amália Rodrigues, tornando-se uma referência fundamental da música popular portuguesa do último meio século», refere a nota. José Cid, à agência Lusa, recorda-o como «fulcral na música portuguesa» e como alguém que «deu muitos apoios a muitos colegas», acrescentando : «à minha pessoa, então, foi incondicional». O funeral realizou-se no fim de semana passado, em Gandarela (Celorico de Basto), Braga.