Trump é um ativo russo?

O problema não está em Trump, está em nós. Demoramos a ajustar, a definir os nossos interesses e a agir em conformidade.

Esta semana, o Presidente da República, Marcelo Rebelo de Sousa, afirmou, na Universidade de Verão da JSD, que o presidente dos EUA, e líder da maior superpotência do mundo, é hoje um ativo russo (disse mesmo soviético, num primeiro momento).
O Chefe de Estado português parte do mesmo erro de interpretação original de boa parte dos comentadores: os países não têm amigos ou inimigos, têm aliados ou adversários. Os aliados de hoje poderão ser os adversários de amanhã, ou vice-versa.
O Presidente dos EUA não é um ativo russo. Pode até ter simpatia por Putin, ou ter alguma proximidade fruto de um passado que não seja totalmente conhecido, mas certamente que quando decide não é na qualidade de ativo russo, mas nos termos do interesse nacional norte-americano (ou até seu ou de grupo, dou de barato), conforme por si interpretado.
Na realidade, Trump está a ajustar a política externa (e não só) norte-americana à dinâmica do sistema internacional e aos desafios que esta coloca. Há uma narrativa um tanto estafada que falava de uma ideia de Ocidente alargado, que envolvia os EUA, Canadá e Europa ocidental num laço comum – John Kennedy falou do ‘lago Atlântico’. Os EUA queria manter o seu poder no mundo e contavam, isso sim, com a Europa ocidental como um ativo seu, na sua relação antagónica com a URSS. A NATO era uma dimensão essencial da relação transatlântica: os EUA continham a URSS a ocidente através, também, da Europa, mantendo forças no continente e suportando os custos da sua defesa. Havia, naturalmente outras alianças e outras dimensões políticas a somar a esta mas, na relação com a Europa ocidental, isto era o essencial.
Com o final da Guerra Fria, o mundo mudou. Tinham já tido lugar as descolonizações e, com a globalização e a diminuição das barreiras ao comércio e investimento, alargou-se o espaço económico em disputa.
A NATO manteve-se e mantém-se porque se manteve a ‘russofobia’ e porque a presença dos EUA era o garante de que os europeus não regressavam aos conflitos anteriores permanentes.
Confundimos, pois, um contexto de partilha de interesses comuns com uma cristalização do sistema.
Há algumas causas para esta confusão. Desde logo, pela proximidade cultural entre Europa e EUA, decorrente do facto de estes terem nascido efetivamente da presença europeia. Depois, pela partilha de regime, o demoliberal. Recorde-se que as democracias venceram a Guerra Fria e que acreditam ser um estágio superior, não se guerreando entre si. A relação especial entre democracias é, também, consequência da ideia do ‘fim da história’ na ‘ilha de paz’.
Este mundo funcionou, no pós-Guerra-Fria, enquanto os EUA foram hegemónicos. Hoje, é notório que estes continuaram a sua visão estratégica global, sendo que a Europa foi reduzindo o seu alcance e, de certa forma, subordinando os seus interesses aos da potência que lhe assegurava proteção.
Em defesa da Europa, convém referir que é cada vez mais notório o quão complexo é fazer convergir 12, 15, 28 ou 27 interesses nacionais num único.
A mudança do eixo económico e de poder para a Ásia faz com que a Europa tenha cada vez menos valor para o aliado norte-americano e, com este Presidente, surge agora a aproximação à Rússia para enquadrá-la na sua estratégia de contenção de uma China, cada vez mais difícil de conter.
Marcelo pode até falar naqueles termos com vista a fazer-se notar ou ‘avisar’ os EUA, mas isso pouco conta. O Presidente dos EUA não é um ativo russo, está a ajustar-se ao mundo que mudou nos termos dos seus olhos e conforme aos seus interesses.
O problema não está em Trump, está em nós. Demoramos a ajustar, a definir os nossos interesses e a agir em conformidade.
Como Darwin disse, sobrevive quem se adapta.
Toda a indecisão custa tempo e dinheiro (e poder)! l