Será que as vacas já voam?

Era tão improvável que a vaca desburocratizadora exibida por António Costa voasse como a estratégia de Gonçalo Matias resultar.

Nota prévia: A tragédia do elevador da Glória exige o apuramento rápido e rigoroso das suas causas. O governo e a câmara devem assumir tratamentos e indemnizações céleres às vítimas e familiares. As responsabilidades políticas e técnicas ver-se-ão a seguir. Agora, estão em causa razões humanitárias prementes, mas também a imagem de um país dependente do turismo e de múltiplos aspetos ligados à segurança, designadamente a que envolve meios de transporte icónicos como os elétricos e funiculares de Lisboa, utilizados anualmente por milhões de nacionais e estrangeiros.

1. Há nove anos, António Costa presenteou a então ministra da Reforma Administrativa com uma vaca voadora de plástico. Foi no quadro da apresentação de um Simplex que pretendia mostrar que as vacas podiam voar tal como era possível desburocratizar. Passado este tempo, nem as vacas voam nem se desburocratizou. A pasta da Reforma do Estado é agora de Gonçalo Matias. Teme-se o pior com o seu anúncio de há dias. Revelou que vai haver um balcão único para o empresário. E que se vai usar o deferimento tácito para deixar avançar construções, o que pressupõe ainda mais desordenamento e anarquia. É uma armadilha clássica. Receber ao postigo a papelada, ter uma cara, um funcionário e um local é bonito. Melhor ainda é antecipar uma escapatória para inevitáveis falhas. O que se tem feito neste campo tem sido inútil, salvo nas mais rudimentares renovações, tipo cartão de cidadão. Na maioria dos casos nada mudou com Costa e dois governos Montenegro. Reproduzem-se promessas sensivelmente iguais e até se acrescentam complicações, como mexer no IUC e nas retenções de impostos, autênticos embustes para aumentar o consumo, receita de IVA e aquecer a economia. Já a vida do cidadão segue igual sempre que envolve mais do que uma entidade do Estado. A desburocratização tem sobretudo correspondido à transferência para o indivíduo ou as empresas do preenchimento redundante de dados que a administração tem em sítios dispersos. Só nas Finanças é que se funciona na ponta da unha. Salvo quando há litígio com grandes grupos a quem, por exemplo, não se cobram milhões de IMI sobre barragens, sabendo-se bem porquê. A bem dizer, o que a cidadania e o empresariado precisam, mais do que um postigo físico ou informático, é que se viabilizem com rapidez e competência projetos realistas, bem estruturados (e não remendos) de apoio às rendas, à construção de habitação, ao regime sucessório, à execução das sentenças, à concretização dos planos da ferrovia, dos metrobus, da prevenção de incêndios e de cheias, de reforma do SNS, entre muitas outras coisas. Uma medida singela e oportuna seria dar meios à nova entidade da PSP que vem parcialmente substituir a AIMA e cujos escassos funcionários ficaram logo atafulhados com cem mil dossiers, um deles com mais de 50 anos. Esperemos que Gonçalo Matias não seja mais uma prova de que é preciso mudar alguma coisa para ficar tudo na mesma. Mas, pela forma como as coisas estão a ser desenhadas, é tão improvável que ele tenha sucesso como a vaca ofertada a Maria Manuela Leitão Marques ter voado. Para desburocratizar, é preciso ter políticas testadas e não um amontoado de ideias. Há que travar o crescimento desordenado do Estado e a duplicação de tarefas, alocar as pessoas onde faltam, descomplicar procedimentos informáticos, reorientar ou extinguir lugares redundantes. E isso, ao contrário do que o ministro proclamou, não se faz com deferimentos tácitos. Esse caminho é facilitar esquemas e situações como os que originaram o escândalo da Comporta, onde os portugueses são praticamente escorraçados das praias. Há pontos de equilíbrio em tudo. É essencial que o voluntarioso ministro tome consciência de que não é face a ‘jotinhas’ que se anunciam exuberantemente políticas de Estado como fez em Castelo de Vide. Isso é meio caminho para acabar como os seus antecessores ou mesmo Elon Musk, afastado e sem credibilidade, apesar de genial e muito rico.

2. Há alturas em que sentimos uma raiva profunda contra a Justiça. Interessa pouco saber se o mal está no legislador, no juiz, no Ministério Público, na investigação ou nas habilidades das defesas. Todos integram um sistema que está sempre a falhar. Em poucos dias, dois casos chocantes: o tempo que levou a prender um bombeiro da Madeira que espancou brutalmente a mulher perante o filho e câmaras de vigilância e a circunstância do cartel da banca (que funcionou dez anos a iludir a concorrência) se ter safado, por prescrição, de pagar 225 milhões de multa. São matérias diferentes. Mas há uma coisa que as liga. Passaram-se em Portugal, são vergonhosas e lamentavelmente só diferem de outras por terem sido mediatizadas, confirmando a força do jornalismo.