Viver sem tempo

Viver sem tempo… A política transformada num show permanente de mentiras. O jornalismo transformado em propaganda e doutrinação.

Este título vem de um livro do filósofo espanhol Manuel Cruz. Não está traduzido em Portugal (penso traduzi-lo em breve) e está inserto na conhecida coleção Herder Pensamiento, da editorial Herder, vindo a lume em 2016. O subtítulo é revelador: «O ocaso da temporalidade no mundo contemporâneo» e algumas teses aí enunciadas partem de premissas que hoje, em 2025, são já irrebatíveis. Eis quatro teses que importa sublinhar: 1.ª) a mutação da aceleração do mundo contemporâneo (a digitalização, a desmaterialização) levaram à perda da experiência da durée, isto é, da duração que é sinónimo de demora. Não estamos longe do que em Hanna Arendt é a via contemplativa, perdida para sempre, diz a autora de A Condição Humana, a partir do movimento imparável da tecnologização da existência: o século XIX, e, com especial terror, o século XX. O quadro de Munch, O Grito, serve de legenda a essa época das cidades-negras, do homem sem Deus, vítima da loucura da velocidade.

Mas no livro de Manuel Cruz há uma segunda tese a ter em conta e que coloca a tónica num outro tipo de sentimento do tempo que, para além de se sentir como loucura da velocidade é sentimento do ocaso. Perdida a experiência da duração, da demora, o que vivemos hoje é a época das sucessões, das intensidades pontuais: catástrofes que se cruzam e se substituem umas às outras: do 11 de setembro ao Afeganistão, do desastre do humano na Síria e na Tunísia, às lutas contras os regimes ditatoriais da América do Sul ou em África: a fome que se repete à revelia das boas intenções de mil e uma declarações de fé. Aí está a Palestina, símbolo máximo da loucura do sionismo de Netanyahu.

Uma das explicações dessa sucessão de terrores e horrores passa por aquilo que Manuel Cruz diz ser a teia de intensidades que, no mundo consumista em que se vive (a pobreza é um consumismo incessante da miséria multiplicada) leva a que o homem viva sob a égide de um novo triunfalismo: o da redução do tempo. Reduzir o tempo é, no fundo, fazer desaparecer um obstáculo: o da reflexão. Se nada parece ter solução, faça-se desaparecer, na amálgama de distrações positivas e negativas do hodierno, o tempo, esse deus antigo que à contemporaneidade acrítica nada pode já dizer. As duas teses que sobram são estas, não menos importantes: 3.ª) desapareceram os projetos de longo prazo (o que é hoje e o que será a União Europeia? Que EUA em 2050? Para onde vai a Rússia? E o Brasil, que papel no mundo multipolar? Que projetos humanos estão em curso?) e, 4.ª) Se já não existe nenhum telos, nenhum fim, nem nenhuma finalidade, o Homem deste século é, em bom rigor, um sujeito esterilizado.

Este livro de Manuel Cruz convoca, para o caso português, outras quatro teses que, no particular, podemos pensar quando nos debruçamos sobre a realidade política e social deste país que, sendo europeu, continua a estar mais próximo – nas condições de vida e na expectativa futura – da América do Sul. Ou, como alguém disse, Portugal parece ser uma espécie de terra do nada, onde, verdadeiramente, nada acontece porque nunca há verdadeiras consequências. Portugal, se para um pensador como José Gil simboliza o «medo de existir», concretizando-o – a esse medo – no quotidiano sofrido de um povo que regrediu moralmente na exata proporção do seu consumismo made in USA, imitando provincianamente a lógica americana da voracidade, nem por isso deixa de ser, hoje, este país «à esquina do planeta», um caso singularíssimo, na Europa, de Terra do Nunca, para além de ser a terra do nada.

Aqui, da justiça à educação, da habitação à saúde, os sintomas desse viver sem tempo confirmam a enfermidade de que padece o país. Vive-se, em Portugal, numa espécie de aturdimento constante, a cada novo ano repetindo-se as tragédias de anos anteriores: incêndios, negociatas de milhões entre Estado e interesses privados; políticos que deixam governos para ganharem milhões como gestores ou administradores desta ou daquela instituição; populações que choram entes queridos mortos nos incêndios (repito, porque o mal se repete) e cobertura televisiva, sob a missão de ter de encontrar notícias, vampirizando a dor do próximo: as câmaras filmam as bocas abertas em desespero (o quadro de Munch, reescrito?), as mãos dos pobres, gretadas, os cabelos oxigenados das estrelas da TV, histéricas e milionárias, os apresentadores dos talk-shows da nossa miséria: «É um ‘spectác’le», diz o dinossáurico apresentador de um concurso sem glória. É a desglória de uma capital «que esfria» como nos versos de Cesário Verde, pejada de entulho, covas, lamaçais – entupida de trânsito e de ódio entre populações que assistem, anestesiadas, ao ascensor da Glória, metáfora de um país em queda, de derrapagem em derrapagem, de incompetência em incompetência.

Viver sem tempo… A política transformada num show permanente de mentiras. O jornalismo transformado em propaganda e doutrinação. Assim se dilui a demora, assim se decapita Chronos, esse deus cuja densidade era uma forma da intemporalidade, da durée. Ungaretti: o sentimento do tempo ou Leopardi, o pressentimento de que a moda é a mãe da morte.

Estamos no ocaso de Portugal: a gerações nascidas nos anos de 1960 e de 1970, com alguns novíssimos nascidos nos anos 80 e mesmo 90 (os novos comentadores imberbes, vindos das jotas, ou de funções-fantasma no Parlamento onde foram assessores que nada fizeram a não ser aprender as manigâncias dos podres poderes dos partidos – os boys do regime sem glória), representam a falência do próprio pensamento. Nas televisões pululam os lugares-vazios, defende-se o indefensável. Consumimos o sem-tempo porque, se porventura, no branqueamento digital em que vivemos houvesse demora, contemplação, silêncio, veríamos, com todo o horror, a nossa face ao espelho: o quadro de Munch, mas agora sorrindo, sadicamente, na época virtual e cínica em que nos educámos e nos educaram em nome de uma corrida para a frente, sem o obstáculo tempo a medir a ação humana, essa espécie em roda-livre.

Professor e crítico literário