No dia 3 deste mês, o cabo que segurava as duas carruagens do elevador da Glória soltou-se e as carruagens despenharam-se. Como em todos os funiculares, as duas carruagens estavam interligadas por um forte cabo de aço, cada uma a fazer contrapeso à outra, numa encosta de grande inclinação. Cada carruagem tinha os seus próprios motores elétricos para se içar, mas, com exceção das acelerações iniciais, o seu esforço não era grande, porque enquanto uma subia a outra descia, contrabalançando-se. O cabo em si dava a volta ao cimo da calçada e ligava-se a cada carruagem numa garra inserida num conjunto chamado trambolho, tudo no subsolo, movendo-se com a carruagem. Para esta subir e descer, havia uma fenda no pavimento, entre os carris, pela qual a garra acedia ao cabo que corria abaixo do pavimento, numa conduta própria.
Se o cabo cedesse, as carruagens deixavam de ter contrapeso e tendiam a escorregar encosta abaixo, aceleradamente. Isto sucede porque um atributo dos funiculares é terem rodas de aço sobre carris de aço, como em todas as ferrovias, o que propicia um baixo atrito quando se movem. Se isso é bom em pisos planos, gerando uma grande eficiência energética do transporte em ferrovias, é mau em pisos muito inclinados, por tornar muito difícil a paragem dado as rodas tenderem a derrapar quando travadas. Por isso, a integridade do cabo de interligação das carruagens é crucial para a segurança do sistema.
No acidente de dia 3, o cabo não se partiu. Foi a ligação à garra que o prendia a uma das carruagens que se desfez, soltando-o. Essa ligação não é feita por apertos, mas sim por um processo em que os arames que compõem o cabo são destrançados e enfiados numa peça de aço com uma cavidade em forma de cone (soquete), a que são presos por uma ‘cola’ metálica fundida e vazada no cone que, uma vez arrefecida, dá a essa ligação dos arames do cabo ao soquete uma resistência semelhante à do próprio cabo. O soquete faz parte das peças fixas da carruagem. Esta operação, semelhante a uma colagem, é realizada manualmente de cada vez que o cabo é substituído, e deve ser feita obedecendo a procedimentos rigorosos, sob pena de o metal fundido usado para prender o cabo ao soquete se deformar com o tempo e fluir, perdendo a aderência e fazendo com que o cabo se acabe por soltar. Que foi o que sucedeu no dia 3, após muitas colagens semelhantes feitas ao longo da vida do funicular da Glória e dos seus congéneres de Lisboa.
Cedências do cabo de interligação das carruagens, como a que sucedeu, podem ser minimizadas mas, ao longo dos muitos anos de vida do sistema, a probabilidade de alguma vez sucederem tem de ser considerada e acautelada com adequados sistemas de proteção.
Por isso, em todos os funiculares existentes mundo fora existem sistemas de travagem que não dependem das rodas. Todos dispõem de algum sistema de proteção adicional independente destas.
Para avaliar as opções de proteção de funiculares, é de começar por notar que na sua grande maioria, pelo mundo fora, dispõem de uma via exclusiva de movimentação, com carris salientes, interligados por travessas, cabos de sustentação ao ar livre entre esses carris, e espaço para montagem de equipamentos acessórios. É o caso, em Portugal, dos históricos de Braga e da Nazaré, dos mais recentes e, na realidade, de todos menos os históricos de Lisboa.
A mais antiga proteção contra a derrapagem das carruagens em ferrovias de alta inclinação foi inventada na Suíça, há 150 anos, e ainda é usada em comboios de montanha naquele país e no histórico ascensor do Bom Jesus de Braga: a cremalheira. Trata-se de um terceiro trilho, dentado, no qual os dentes de uma roda também dentada, na carruagem, se encaixam, eliminando a possibilidade de derrapagem. O Eng.º português que concebeu o ascensor da Glória também a previu e instalou neste, em 1886, mas foi removida quando da eletrificação de 1915, por razões a que voltaremos.
A cremalheira foi sendo abandonada nos novos projetos e modernizações a partir do início do século XX, mas não se encontram nenhuns funiculares históricos que não tenham entretanto beneficiado de sucessivas modernizações, ou sido extintos, exceto em Portugal.
Além da universal substituição das carruagens com estrutura de madeira por outras mais leves e seguras inteiramente de metal, da modernização dos sistemas motrizes e da generalização do controlo por microprocessador, tornando muito mais rápida a reação à perda de tração e a resposta dos travões, minimizando as derrapagens, todos os funiculares identificados dispõem de pelo menos três sistemas de travagem, dos quais um de emergência, e frequentemente de dois cabos redundantes.
Infelizmente, estas proteções contra a perda de cabo dificilmente são viáveis no elevador da Glória e congéneres de Lisboa. Isto resulta da opção de partilha das vias de circulação destes funiculares com pessoas e, no caso da Bica, também com outros veículos, do que deriva a opção por carris encastrados sem travessas, como nos elétricos, e a montagem no subsolo, numa conduta, do cabo de tração, acedido por uma fenda entre os carris. Seguindo a mesma filosofia, a própria cremalheira inicial foi removida, no início do séc. XX, e a montagem de carris salientes a apertar por mandíbulas em travagens de emergência tornou-se inexequível.
Sendo em Portugal a partilha com o público do espaço de circulação dos funiculares exclusiva de Lisboa, não é única no mundo. Antes da construção do ascensor da Glória já um sistema obedecendo a condicionantes e soluções semelhantes existia na cidade de San Francisco nos EUA, e que este inspirou a conceção dos de Lisboa é patente nos jornais da época.
Os ‘cable car’ de San Francisco, ainda em circulação mas principalmente para uso turístico, dispõem de três sistemas de travagem, dois dos quais de emergência: um que assenta no solo quatro sapatas de madeira macia de 60 cm cada, e um de último recurso que engata uma cunha metálica na fenda do cabo e estaca a carruagem, no caso das condições do piso nem às sapatas de madeira conseguirem proporcionar aderência suficiente.
Os funiculares da Glória não dispunham de soluções semelhantes, mas a necessidade de algum travão de emergência não deixou de estar presente mesmo com a eliminação da cremalheira inicial: um sistema de mandíbulas atuando sobre os perfis metálicos da conduta do cabo. Única no mundo e desconhecendo-se a sua patente e se alguma vez foi testada, provou-se que não funcionou quando necessário.
Temos, assim, que o ascensor da Glória e provavelmente os seus congéneres de Lisboa não dispunham de travões que o protegessem contra a perda do cabo de tração, situação única no mundo e absolutamente inaceitável face às modernas exigências de segurança da mobilidade.
E, dado que tal situação é agora internacionalmente conhecida, só parecem existir duas opções de futuro: ou a completa modernização dos funiculares de Lisboa, com soluções de segurança que exigirão um novo projeto, ou a sua extinção.
Professor do Instituto Superior Técnico, jubilado