Da guerra híbrida

Os formalismos da guerra têm vindo, como o uso do fraque, a desaparecer.

Muito por culpa das dificuldades de todos os Presidentes dos EUA junto do Congresso, foi-se perdendo o hábito cortês de declarar a guerra. Para evitar o controlo parlamentar, as guerras foram acontecendo, por vezes secretas, com ajuda de patriotas locais e conselheiros militares exportados. Não declarada a guerra é mais fácil invocar a “plausible deniability” e pelejar por procuração, multiplicando as proxy wars. Muita da guerra fria foi assim combatida, evitando choques frontais entre as duas superpotências e garantindo, como side effect, a sobrevivência da humanidade como um todo.

A doutrina militar russa já identificara os elementos do modelo ocidental de “guerra não linear”: sanções, medidas de apoio económico, intervenções humanitárias, apoio a ONG’s, think tanks e centros de investigação em ciências sociais e políticas, financiamento de associações e partidos políticos. A anexação da Crimeia em 2014 e a concomitante invasão soft do Donbass  deram rédea solta à versão russa da “guerra não linear”. A guerra híbrida inclui propaganda, actividades políticas subversivas, a prática de crimes de natureza diversa, contra vítimas civis,  desinformação (produzida a níveis industriais em fábricas de trolls e em canais de “informação” televisiva 24/7 emitidos em várias dezenas de línguas), forças militares descaracterizadas (“little green man”) mas que empregam técnicas profissionais e utilizam equipamento  pesado e sofisticado.

Em 2022 a invasão da Ucrânia trouxe o regresso da guerra convencional mas sem afastar os fenómenos de hibridismo. Já neste Verão a não linearidade do conflito ultrapassou novas fronteiras. Nos céus dos Estados-membros da NATO (e que para o caso também integram a União Europeia) passaram a surgir enxames de drones. Vieram primeiro da proximidade com as fronteiras russas e bielo-russas e surgiram nos céus da Polónia. Já esta semana, pairaram pela Dinamarca, de norte a sul, paralisando o tráfego aéreo civil e fechando aeroportos. A escolha não é fortuita, coincide com a presidência semestral do Conselho da União Europeia por parte de um Estado muito activo no apoio à Ucrânia.

O recurso a drones tem custos baixíssimos, usa tecnologia ao dispor de quem tenha umas centenas de euros no cartão de crédito e acesso à INTERNET. Detectar e derrubar estes drones é caro e difícil. Imputar a autoria do sobrevoo é quase impossível se os drones utilizados forem civis. A margem para equívocos e incidentes só é superada pela possibilidade de Moscovo negar a autoria dos sobrevoos. As forças armadas dos Estados visados descobrem aquilo que os ucranianos já conhecem desde 2022: a defesa aérea tradicional é totalmente desadequada ao combate aos drones. Pior: o recurso a centenas de drones baratuchos pode saturar os sistemas de defesa, esgotar rapidamente os stocks de mísseis antiaéreos e custar milhões de euros por dia.

A população europeia, a leste e a norte, está assustada. As imagens dos efeitos destrutivos dos drones russos na Ucrânia não deixam muito espaço à imaginação dos europeus cujas cidades são sobrevoadas por drones. A guerra visa quebrar pela força a vontade do inimigo. A guerra híbrida atinge o mesmo resultado com recurso ao medo.

Na arte da guerra Molière não goza do favor que concedemos a Tucídides, mas fez dizer a Monsieur Jourdain tudo o que precisamos de saber sobre o tema: “Tout le secret des armes ne consiste qu’en deux choses, à donner et à ne point recevoir.” (Le bourgeois gentilhomme, II, 3).