O Serviço Nacional de Saúde (SNS) enfrenta hoje o maior desafio da sua história: preservar a sua missão universal num contexto de estagnação reformista, risco orçamental iminente e choques externos que agravam vulnerabilidades estruturais. O mais recente relatório do Conselho das Finanças Públicas (CFP) evidencia a dimensão da crise. Em 2024, a despesa do SNS atingiu 15 553 milhões de euros, mais 1 297,8 milhões face a 2023 (+ 9,1 %). A receita, em contrapartida, foi de apenas 14 175 milhões, crescendo 4,1 %, originando um défice recorde de 1 377,6 milhões agravado em 741 milhões relativamente ao ano anterior. É o pior saldo desde 2015 e ultrapassa até os anos da pandemia, apesar de o orçamento aprovado prever um saldo nulo.
As causas são diversas. As despesas com pessoal aumentaram 12,1 % (+ 704 milhões de euros), impulsionadas não só por atualizações salariais e novas contratações, mas também por um volume inédito de trabalho suplementar: 17,9 milhões de horas, que custaram 465 milhões de euros. A par disso, a contratação de serviços médicos externos somou 229,8 milhões de euros equivalendo a 6,3 milhões de horas adquiridas fora do SNS. Esta dinâmica revela um sistema dependente de encargos permanentes e incapaz de alcançar ganhos de eficiência duradouros.
A pressão financeira é igualmente visível nos medicamentos hospitalares, cuja fatura ascendeu a 2 139 milhões de euros (+ 9,2 %), e nas compras de inventários, que chegaram a 3 075 milhões de euros. Paralelamente, a despesa de capital foi residual, apenas 2,4 % do total e até recuou face a 2023, sinal de que se continua a privilegiar o funcionamento corrente em detrimento do investimento estruturante em infraestruturas, digitalização e inovação.
A dívida a fornecedores ultrapassou 1,4 mil milhões de euros e o prazo médio de pagamento fixou-se em 77 dias, com menos de 40 % das entidades a cumprir o limite legal de 60. Quase 95 % da receita do SNS provém de transferências do Orçamento do Estado confirmando uma dependência estrutural que limita qualquer margem de autonomia.
Todavia, mais preocupante do que os números é a pobreza do debate que domina o setor. Persistem elites políticas, sindicais e institucionais instaladas num ambiente protegido pelo financiamento público, que insistem em repetir a mesma receita: «mais despesa, maior despesa». Este discurso ignora que o problema não reside apenas no financiamento, mas sobretudo na ausência de uma reforma estrutural consequente e duradoura. Insistir na injeção de recursos sem cuidar da inovação da gestão, da eficiência dos processos, da monitorização rigorosa de resultados e do combate ao desperdício, à ineficiência e à fraude é perpetuar um círculo vicioso de défices e disfunções crescentes. Trata-se de cortinas de fumo que adiam soluções estruturantes e fragilizam ainda mais a confiança no SNS.
A resposta não pode ser apenas mais dinheiro. O SNS precisa de um novo paradigma baseado em maior autonomia de gestão para as unidades, profissionalização da liderança, digitalização interoperável, auditorias sistemáticas e responsabilização efetiva.
O SNS continua a ser um pilar essencial da coesão nacional e da justiça social. Porém, se persistirmos na ilusão de que basta aumentar a despesa para resolver os seus problemas, corremos o risco de assistir à erosão irreversível de um dos mais valiosos patrimónios coletivos do país. O relatório do CFP é um alerta inequívoco: ou Portugal assume uma reforma estrutural ambiciosa e inteligente, ou em breve assistiremos ao colapso orçamental de um SNS ineficiente e incapaz de resistir ao desafio da sustentabilidade.