É um verso conhecido de Fernando Pessoa: «Cerca de muros quem te sonhas». O título do poema é já revelador da intenção do texto: Conselho. Primeiramente publicado na revista Sudoeste em Novembro de 1935, é no mínimo irónico que este seja um desses poemas que funcionam como augúrio, injunção aos vindouros. O seu autor, que morre precisamente em Novembro de 35, talvez soubesse que este seria um desfecho a ser lido como mais do que um conselho. A mensagem é espiritual, é humana: cerca-te, protege-te contra o mundo e suas leis. Levanta o alto muro da consciência contra a loucura da realidade e o seu vórtice.
Vivemos, como desde há 100 anos se não vivia, nesse vórtice, ou nessa vertigem da História que exige que ergamos um muro, ou vinquemos com coragem os limites que outros, e/ou nós próprios, podemos ultrapassar. A questão, porém, não é de nos impormos qualquer espécie de prisões ou de regime de opressão que bloqueiem a nossa expressão. A questão é a de fortalecermos a ideia de acção livre e, por isso consciente. Levantar contra a loucura do mundo a lucidez da temperança, a lucidez da reserva, eis o que o poema de Pessoa propõe.
Os versos dessa composição revelam, vendo bem, outra coisa ainda. Ao escrever «Depois, onde é visível o jardim / Através do portão de grade dada,/ Põe quantas flores são as mais risonhas,/ Para que te conheçam só assim» é o símbolo que desata o sentido das metáforas: no jardim que é a alma, depois de erguido o muro da consciência, é urgente plantar «através do portão de grade dada» (portão é portal, é passagem para outro grau de percepção interior) «flores as mais risonhas», isto é, os mais autênticos valores que emprestam à alma o riso, ou o sorriso dos que chegaram não a uma filosofia, mas a uma sageza de vida. São imagens necessárias neste tempo em que as flores dos ideais de humanismo e defesa da vida murcham. Pessoa, na senda do símbolo acrescenta: deverão conhecer-nos só assim: com as flores risonhas plantadas no jardim da consciência. Há uma lei, em todo o caso, para mostrar o jardim ao outro que o queira ver: nada mostrar de forma indiscreta. Cultivar, enfim, a humilitas. Daí o gesto de fazer canteiros iguais aos de todos os outros canteiros. Assim os outros poderão adivinhar, intuir, a natureza desse nosso jardim. Estamos nas águas de uma subtil mas sólida linha de acção: viver é viver sem sobressaltos, estóica e sabiamente. Só assim, crescendo para dentro (esse que não é visto por ninguém) é possível deixar flores naturais medrarem.
Viver recusando o nojo do mundo. É essa a lei interior a que o criador da heteronímia obedece? E quem, hoje, obedece a essa sageza da simplicidade? É preciso lembrar Vieira, ou São Francisco, ou Agostinho da Silva: é fundamental aprender a morrer para este mundo. Pessoa, que leu com atenção Annie Besant e místicos e esotéricos como Liedbater e estudou os mistérios, usa uma linguagem cifrada, a ser descoberta pelo neófito. O conselho pede os verbos no imperativo, ordenando, sugerindo («Faze de ti um duplo ser guardado»). Duplo ser: guardar quem somos verdadeiramente para o real que há-de vir. Mostrar, neste mundo de formas efémeras em que vivemos, só o que esse mundo pede: o lado realista e prático. Pessoa concebendo a vida à luz dos dois planos de que ela se compõe: a realidade visível versus a dimensão metafísica. Numa carta a Cortes-Rodrigues dirá que sem a intuição da metafísica da existência não se atinge o alto grau de poeta que noutros se multiplica…
Vivemos no tempo da formatação, da escassez de imaginação, na época mais hipócrita e materialista que degrada o homem e o animaliza. Uma das expressões dessa degradação está na exposição do privado, na vaidade corruptora do que um dia foi a intimidade. Tudo à mostra, eis um dos planos do Mal: convencer-nos que tudo e todos são maus puros porque em permanente estado de escaparate. Do Parlamento às televisões, consciência é um jardim que foi deixado à mercê das ervas daninhas. Pessoa, que poderia ter atingido a celebridade muitíssimo cedo, recusou a exterioridade. Agostinho da Silva, esse, depois da série das Conversas Vadias com jornalistas e outros astros do ecrã no início dos anos 90, rejeitou ser uma pop-star. É urgente recusar. Rejeitar o fácil, o banal, o que se traduz em competição, levando ao ódio, à inveja.
«E que ninguém, que veja e fite, possa/Saber mais que um jardim de quem tu és – // Um jardim ostensivo e reservado,/ Por trás do qual a flor nativa roça// A erva tão pobre que nem tu a vês…», assim termina o poema de Fernando Pessoa. Símbolos, metáforas, imagens, associações da imaginação, o jardim que somos é «ostensivo e reservado». É no enigma desse jardim que a «flor nativa», a flor da verdade natural, roça a «erva tão pobre» – a nossa mortal condição. Essa erva pobre, a isso regressamos, sugere o poema. Neste tempo em que a guerra de Trump e de Putin e dos mandarins do mundo parece ser o horizonte que nos espera, recuperemos lições clássicas, antigas, humanas, vindas da lucidez. Somos ou podemos ser um jardim de flores que vicejam, fortes. Cultivar o ódio, a intriga, a competição, fomentar em tudo a ideia de sucesso, isso é corromper o jardim. Trump e os políticos desta fase final do Ocidente não iluminam os povos. São ervas daninhas. A alma deles é lama.
Professor e crítico literário