O SOL inseriu, na sua última edição, uma excelente nota necrológica sobre José Simões Ilharco. Nela recuperou um trecho de uma entrevista em tempos dada por ele ao jornal, em que é feita referência a um acidente com uma arma de fogo, em que eu próprio estive envolvido, há mais de 50 anos. Porque do texto pode resultar alguma interpretação equívoca, fico grato que o SOL me dê o ensejo de apresentar a minha leitura do incidente.
Nesses anos de 1974 e 1975, José Simões Ilharco e eu éramos oficiais milicianos no Estado-Maior General das Forças Armadas. Meses antes, eu tinha sido seu instrutor na Escola Prática de Administração Militar.
Num certo dia, tínhamos almoçado juntos na messe de Pedrouços e chegámos os dois no meu carro ao EMGFA.
Juntos também, à conversa, entrámos numa sala onde estavam quatro pessoas. Uma delas tinha na mão um velho revólver, trazido dos dias da ocupação da Legião Portuguesa. Era uma arma bastante antiga, que essa pessoa mantinha frequentemente sobre a sua mesa de trabalho, com que brincávamos como se fosse uma peça de museu. Nunca me tinha passado pela cabeça que aquela arma ainda funcionasse.
Num gesto de brincadeira, pedi o revólver ao nosso colega, que mo passou para a mão, e encostei-o ao corpo do Simões Ilharco. E carreguei no gatilho. Até hoje me pergunto por que o fiz.
Ouviu-se uma detonação seca. Nesse instante, o proprietário do revólver murmurou, aturdido, que o revólver estava carregado. Teria descoberto algures balas para ele e, inconscientemente, tinha-mo entregue sem disso me alertar.
Simões Ilharco foi levado para o hospital militar, foi operado e, felizmente, salvou-se.
Talvez porque a bala era velha, ou pelo facto do tiro ser à queima-roupa, o impacto terá sido atenuado. Visitei-o nessa noite no hospital e voltei lá por mais de uma vez. Não tendo ocorrido, na ocasião do incidente, a mais leve altercação entre nós, como todas as testemunhas confirmaram, creio que ele próprio terá informado a família sobre o que se tinha passado.
Houve lugar a um processo disciplinar, instruído pelo então major Gabriel Espírito Santo (depois general e CEMGFA), tendo eu sido ilibado de qualquer intencionalidade dolosa no ato, no entanto irresponsável, que praticara.
Todas as pessoas que assistiram ao incidente, sem uma única exceção, a começar pelo próprio Simões Ilharco, confirmaram os factos. Nunca ninguém, alguma vez, deu voz a outra versão que não fosse a de um lamentável acidente.
Porém, a minha culpabilidade pessoal face ao José Simões Ilharco nunca se atenuou e só foi minorada por saber que ele não ficou, por esse motivo, com a sua saúde afetada.
A história deste malfadado tiro, que para sempre passou a fazer parte da minha vida, e que continuo a contar amiúde porque a assumo em pleno, sem nunca a esconder, é a mais triste de todas as memórias que guardo desse alegre tempo de Abril.