Timor-Leste, um trauma e uma profecia (memórias sentimentais)

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Jornalista da TSF em 1999, entrou em Díli com as tropas das Nações Unidas (Interfet) que restabeleceram a ordem em Timor Leste após semanas de terror provocado pelas milícias pró-integração na Indonésia que se seguiram ao referendo em que os timorenses votaram pela independência. Agora, 26 anos volvidos, jornalista da TVI e da CNN-Portugal e colunista do SOL, recorda esses tempos, na primeira pessoa

Era grande a envolvência naqueles meses da segunda metade de 1999, antes e depois do referendo. Com emissão especial contínua, andávamos na TSF consumidos pelo trabalho, pelos relatos dos camaradas no terreno, a análise, as reações e as ‘fontes’ da Resistência. As mesmas que, após o massacre de Santa Cruz, em 1992, contactara em madrugadas longas de telefonemas na redação da CM Rádio.

Há muito que mostrara disponibilidade e vontade de ir para Timor-Leste. Julho trouxera o nascimento da filha mais nova, um argumento de peso para não ir, mas naquela altura não se antevia o caos de segurança que veio a verificar-se. Na consulta ao povo timorense, uma maioria de quase 80% decidiu pela independência…

O cenário

Não houve relatos de festa nas ruas de Díli. Logo após o anúncio do resultado do referendo, no início de setembro, milícias pró-integração cercaram as instalações de apoio ao processo referendário e lançaram uma campanha de terror, com a passividade das autoridades policiais e dos militares indonésios. Era evidente que se tratava de uma ação articulada. 

A casa da delegação de observadores portugueses foi atacada. O hotel onde fora anunciado o resultado pelo chefe da missão da ONU seria saqueado e queimado dias depois. Confirmou-se o pior dos possíveis cenários, que levou milhares de pessoas ao refúgio cauteloso das montanhas depois da votação.

A tensão ecoava na rádio, lia-se nos jornais, via-se nas televisões – não havia redes sociais… –, contagiava comportamentos, emocionava. A violência liderada pela milícia Aitarak era avassaladora, com confrontos sangrentos, perseguições, destruição e assassínios, mas as FALINTIL (Forças Armadas de Libertação Nacional de Timor-Leste) manter-se-iam acantonadas nas montanhas, num exemplo de disciplina. 

Diplomatas, militares e polícias que integravam o grupo de observadores portugueses tiveram de se refugiar no murado complexo da UNAMET (Missão da ONU em Timor-Leste) com os elementos das Nações Unidas. 

Pela incapacidade de garantir a segurança para continuar o trabalho e perante pressões de Portugal, grande parte dos jornalistas portugueses teve de deixar o território, carregando um sentimento de abandono, de missão por cumprir. 

Abrigados também na UNAMET, Luciano Alvarez (Público), José Vegar (Expresso), Jorge Araújo (Independente) e Hernâni Carvalho (RTP) teimaram em ficar e estariam entre os últimos a sair. Ouvíamos e liamos o que nos diziam, o «insuportável ruído das lágrimas», escreveriam depois. Era grave, caótico, irracional, preocupante e mobilizava cidadãos para manifestações solidárias com o povo timorense.

Centenas de timorenses refugiaram-se junto às instalações da UNAMET, com a suposta defesa da bandeira da ONU. Quando o cerco das milícias se tornou insustentável, muitos saltaram desesperadamente os muros, lançando as crianças entre a vedação farpada. As imagens impressionaram. Chefe e outras dezenas de membros da missão recusaram deixar o complexo enquanto não estivesse salvaguardada a vida dos timorenses ali acolhidos e a confirmação de uma força multinacional. Muitos timorenses resguardados na missão conseguiriam fugir, aparentemente com o apoio de religiosas e de Max Stahl, o jornalista britânico que registou e mostrou ao mundo o massacre de Santa Cruz. A maioria dos elementos da UNAMET, os quatro últimos jornalistas portugueses e os timorenses que trabalhavam nas missões internacionais sairiam sob escolta militar indonésia, diretamente para o aeroporto. A evacuação daria consistência à necessidade de uma ação musculada da comunidade internacional. 

Depois da ida a Díli de uma delegação do Conselho de Segurança, começou a desenhar-se uma intervenção multinacional e a UNAMET deixaria, na prática, o território.

A ida

Ligaram-me da rádio num domingo. Estava numa festa de aniversário rodeado de crianças. «Podes ir amanhã?». Foi como um murro, mas a palavra havia sido dada e não voltei atrás. Questionei e ainda questiono se devia tê-lo feito. Com duas crianças, uma recém-nascida, tudo muda quando à tua frente tens a perceção do risco. Fui, deixando para trás o natural rasto de angústia familiar que o derradeiro abraço de partida não atenuou. Os meses seguintes seriam dos mais difíceis em casa, sem que disso me dessem conta enquanto lá estive. Eram dias de grande dramaticidade mediática. O mais velho tinha 4 anos. Seria protegido na escola. «O pai está na guerra, mas é dos bons», dizia. Alguém simplificou a explicação ao miúdo…

A espera

Não deu tempo para a aconselhável profilaxia de prevenção da malária. Fui a uma clínica em Darwin, cidade de onde faria a ponte para Timor. O médico sorriu quando lhe disse ao que ia. «A única proteção verdadeiramente eficaz é não ser picado», mas lá receitou comprimidos de mefloquina. Precisava de duas semanas prévias de toma antes do risco de infeção. Teria só uns dias. Sugeriu «muito repelente e água tónica». O uso do repelente em Timor-Leste danificaria o auricular do telemóvel e do telefone satélite. A agressividade química daquela mixórdia anti-mosquito queima o plástico.

Em Darwin, onde continuavam a chegar relatos de timorenses desaparecidos e de caos, os jornalistas acumulavam impaciência, tentavam perceber como entrar ou reentrar no território. Entretanto, falávamos com David Wimhurst, porta-voz da UNAMET, que deixara Díli e estacionara estrategicamente em Darwin, juntávamos mantimentos para a partida e arranjávamos estórias com o testemunho dos timorenses instalados num campo de refugidos, as informações que chegavam do território, a preparação da INTERFET (Força Internacional para Timor-Leste) ou até a vida dos aborígenes que, como seres de casta intocável, deambulavam pelas ruas das cidades do Território do Norte australiano. 

Certa noite surgiu a hipótese de embarcar com um pescador australiano que nos deixaria no sul da ilha, muito longe de Díli, a norte. O desafio foi feito por um camarada português que já tinha falado com o pescador. Contactei Lisboa. «Nenhuma reportagem, por melhor que possa parecer, justifica o risco deliberado de vida, faz como entenderes». Foram mais ou menos estas as palavras do Carlos Andrade, então diretor da TSF. Veio à memória o episódio dos cinco jornalistas assassinados em 1975, em Balibó. Sem qualquer retaguarda de segurança, não alinhei. 

No dia seguinte fui com a Cândida Pinto, então na SIC, mais uma vez ao consulado local da Indonésia. Recebemos finalmente o ‘visto’ para entrar – um carimbo numa folha agrafada ao passaporte. Timor-Leste era já uma terra em transição, de indefinição diplomática. 

Durante este impasse de dias em Darwin, a Indonésia aceitara a entrega do território a uma força multinacional, um processo não suficientemente rápido para impedir as milícias pró-integração de aplicarem a estratégia de ‘terra queimada’. A força multinacional partiu para Timor-Leste ainda com relatos de assassínios um pouco por todo o território e os jornalistas começaram finalmente a entrar. O general australiano Peter Cosgrove, comandante da INTERFET, avisou que o terreno era perigoso, mas a comunicação social não hesitou, foi avançando à medida das disponibilidades de transporte, fosse militar ou de ONG. 

A entrada

Consegui viagem para Díli num C-130 da ONU ao serviço do Programa Alimentar Mundial. Liguei para casa instantes antes de embarcar, era madrugada em Portugal. «Tem cuidado, amo-te muito», seria a derradeira senha. 

Foi um voo breve. Cheguei a Díli a meio da tarde com o Mário Ramires, então no Expresso, e o Manuel dos Santos, repórter de imagem da RTP. Estávamos por nossa conta, como avisara um tripulante.

Pouco antes da nossa chegada fora assassinado um camarada holandês em serviço para o Financial Times. À boleia de um motociclista, caíra numa emboscada no bairro de Bécora. O motorista conseguiu fugir, mas Sander Thoenes foi mutilado e morto por milicianos, supostamente apoiados por militares indonésios. Na sequência, a entrada de jornalistas em Timor-Leste seria suspensa durante a semana seguinte. 

A zona oriental do aeroporto era controlada por forças australianas e a parte ocidental por um contingente indonésio. Não vimos ninguém nas instalações do modesto aeroporto. Chegou um todo-o-terreno. Era a boleia do Manuel, o Luís Castro, que já estava em Díli. Seguiram diretamente para uma reportagem. 

Sem transporte e com a noite a chegar, ponderava com o Mário a possibilidade de montar tenda ali mesmo, no aeroporto, quando se aproximou a primeira camioneta com bens alimentares enviados pelo PAM. Fizemos sinal. Os dois ocupantes timorenses sorriram e pararam. Iam para a cidade. Falavam português. Não tinham lugar na viatura, mas arranjou-se espaço em cima da carga, bem lá em cima, e fomos, eu e o Mário. 

No caminho até à cidade tivemos a imagem constante de colunas de fumo e o cheiro intenso a queimado, que se entranhou na roupa ensopada pelo calor húmido. Aqui e ali, a curiosidade de um velho ou uma mulher com crianças. Esta viria a ser a primeira impressão narrada para a rádio a partir de Díli. 

Todo o percurso foi feito em quase silêncio. E o silêncio é, como aprendemos nestes cenários, cúmplice das memórias difíceis. Faz-nos perder a objetividade no momento, transporta-nos para o lugar emotivo da saudade. Ai Timor… a melodia de Trovante metralhava na cabeça e trazia os rostos que deixara em casa.

A viatura foi diretamente para o complexo da UNAMET, estacionou no terreno anexo, onde dias antes centenas de timorenses se refugiaram. Nada tinha sido mexido. No chão havia cobertores, peças de roupa, biberons, latas de conserva, fraldas de bebé, óculos quebrados, papéis, recipientes de plástico, pequenas manchas de sangue e duas ou três garrafas de vidro que pareciam ter sido bombas artesanais cocktail molotov, não usadas. Dava para imaginar o desespero. 

Entre os despojos da fuga vi dois ‘terços’ em sândalo, com fios partidos, já sem algumas contas, e uma pagela religiosa com a imagem icónica de S. José com o Menino ao colo. Voltaram os pensamentos ruminantes e entendi a circunstância como mais do que uma coincidência. Procurei racionalizar, contrariar a emoção. Em contexto de fé, um acaso pode ser interpretado como ocasião. Guardei um ‘terço’ e dei o outro ao Mário antes de cada um seguir o seu caminho.

Depois de tirar notas do cenário, a mesma boleia que me trouxe do aeroporto levou-me ao complexo onde vivia o bispo de Díli, no outro lado da cidade. Aguardava-me o sorriso aberto do camarada Manuel Acácio, que acompanhara o referendo e reentrara em Timor-Leste na véspera, a partir de Jacarta. 

Na casa do bispo, queimada e em ruínas, destacava-se uma enorme estátua de N. Sra das Graças, parcialmente danificada pelo fogo, imagem que inspirou a segunda crónica de Timor-Leste. 

Outros edifícios do complexo, onde viviam religiosas canossianas e funcionava a Comissão Justiça e Paz de Timor-Leste, seriam a casa de jornalistas portugueses nas semanas seguintes. Ali fiquei com o Acácio e, mais tarde, com o Barreto, outros camaradas da SIC, da RTP e da Renascença.

Os primeiros dias exigiram a estranha convivência com milicianos que circulavam pelas ruas, passando resvés em motorizadas, munidos de paus e catanas, no que podia ser entendido como um aviso. Éramos facilmente identificáveis. 

A Igreja no terreno

Há um nome que não pode ser excluído de uma memória escrita, mesmo com a debilidade da distância temporal: ‘Madre’ Margarida. A religiosa timorense era uma referência, conhecia quase toda a gente em Díli e quase toda a gente a conhecia. Cruzava-se todos os dias com os jornalistas portugueses acolhidos no complexo. A idade já não lhe permitia grandes caminhadas. Recordo o dia em que a convidamos para dar um passeio pela cidade. Seguiu na frente de uma carrinha Toyota de nove lugares, de janela aberta, saudando todas as pessoas que a viam em euforia. Numa paragem, uma mulher aproximou-se em lágrimas e beijou-lhe as mãos. No lugar imediatamente atrás, percebi a reação emocionada. «Ela pensava que eu estava morta… é a minha gente, é a minha gente», explicou a religiosa. 

O papel da Igreja católica durante a ocupação indonésia já foi contado, recontado e escrutinado, entre o pragmatismo diplomático de João Paulo II, que não deixara de, na visita a Díli em 1989, evidenciar a causa da libertação, e a rede discreta de apoio à resistência. 

Timor-Leste deve a autodeterminação também à Igreja católica, tantas vezes suporte em processos de libertação dos povos. Admitindo-se evidentemente que, nestes, não há posições unânimes, é reconhecido o papel de cristãos empenhados na defesa da dignidade humana. No caso de Timor-Leste, a Igreja foi ainda a entidade que permitiu vincar a diferença em relação à cultura religiosa islâmica, maioritária na Indonésia. 

A história de bispos e administradores apostólicos, de sacerdotes como o padre jesuíta João Felgueiras, de religiosos e religiosas que denunciaram a opressão, esconderam membros da resistência, reclamaram o direito à autodeterminação e à paz ou ajudaram a disfarçar ações logísticas de guerrilha, não é um mito. Relatada pelos protagonistas, com pormenores, dá-nos outro fôlego… 

Durante os tumultos após o referendo, as religiosas protegeram centenas de refugiados, enfrentaram os milicianos pró-Indonésia quando estes atacaram o convento e o complexo residencial do bispo, continuaram a sair à rua para, apesar das ameaças, manter a recitação do ‘terço’ no Largo de Lecidere.

O apoio à causa timorense e à resistência faz agora parte da memória e a Igreja enfrenta o desafio de redefinir o seu papel no auxílio à construção do país, que não precisa apenas de infraestruturas, mas de formar novas e novos líderes imbuídos de ética na ação, da consciência de justiça social no exercício político. 

Terra de sorrisos largos – em demasia diremos nós, ocidentais, viciados em jogos de cinismo e hipocrisia –, Timor-Leste vive ainda com a extrema pobreza, no contraste da luta quotidiana pela sobrevivência. Os sorrisos das crianças entendem-se. «Alô mister, diak-ka-lae?».

Na visita a Díli, em setembro de 2024, o papa Francisco sublinhou a disponibilidade da Igreja para continuar a dar apoio em áreas como a formação/educação, a saúde e a assistência aos mais desfavorecidos, propondo a Doutrina Social e exortando os agentes pastorais a irem além da mera superficialidade religiosa. A religião tem um papel a desempenhar no edifício ético, não necessariamente de fação ideológica ou partidária, mas de inegável consequência social e política. 

Estórias

Voltando a setembro, outubro e novembro de 99… em reportagem foram semanas de enquadramentos, estórias narradas e estados de alma, na cidade ou na subida às montanhas, da marginal do sol nascente, ao recorte das encostas em contraluz. Em Díli continuavam os incêndios, pilhagens, tiros esporádicos, movimentações militares, a descoberta de cadáveres e boatos. 

A INTERFET fazia buscas no encalço de bolsas milicianas armadas. Ian Martin, de regresso a Díli para preparar a instalação da nova UNTAET (Administração da ONU para a Transição em Timor-Leste), que seria liderada por Sérgio Vieira de Melo, encontrava-se quase diariamente com jornalistas no Hotel Turismo para briefings sobre a situação no terreno. 

Entre os jornalistas portugueses que reentraram e os que pisavam pela primeira vez Timor-Leste, foi estabelecida a solidariedade básica por comida, proteção ou o simples empréstimo de uma máquina de barbear. 

A concorrência era muita, mas, na verdade, para cumprir as regras da precaução, o trabalho não tinha muito por onde se expandir. Era sobretudo a criatividade na abordagem que fazia a diferença. Em várias ocasiões de maior imprevisibilidade fazíamos deslocações em grupo. Foi assim na subida a Uaimori, o refúgio das FALINTIL na montanha. Seguimos guiados pela resistência, à boleia da AMI, para oriente, em estrada esburacada, danificada por recentes derrocadas, consumida pelo tempo. 

Avisaram à partida que era um percurso ‘mal frequentado’. Os quase 70 quilómetros de costa entre Díli e Manatuto fizeram-se com a cautela que as condições do caminho exigiam – o regresso, de noite, seria prudentemente mais rápido…

De Manatuto seguimos para montante ao longo do rio com o mesmo nome. Horas depois chegamos a um terreiro de intenso verde, sombreado pela vegetação autóctone. A difícil e longa viagem pela floresta, controlada por elementos da resistência discretamente posicionados no percurso, foi compensada pelo caloroso acolhimento de Taur Matan Ruak, o comandante da base. De baixa estatura, surgiu de calças de ganga, camisa militar, óculos escuros espelhados, rodeado por dezenas de crianças curiosas. Cumprimentou todos, ofereceu água fresca e falou com os jornalistas. 

A estadia foi breve. Enfermeiro e médico da AMI não perderam tempo, estavam ali para os cuidados de saúde. No centro do campo destacava-se uma tenda com antenas, parabólica e caucasianos fardados – ‘agentes’ australianos.

Até à saída do contingente militar indonésio, a situação permaneceu precária. Só se respirou algum alívio quando o general australiano a liderar as forças internacionais anunciou a definitiva retirada indonésia.

A retirada

Certa madrugada ouvimos tiroteios mais intensos em Díli. Soubemos mais tarde que estava em marcha na zona portuária o embarque de centenas de famílias, tendo como destino Timor-Ocidental, Indonésia. A independência não tivera o voto unânime. Havia famílias reféns da ligação à Indonésia e pairava um sentimento de vingança. 

Os jornalistas foram previamente acantonados pela força multinacional. «Há ameaças contra jornalistas, é para vossa segurança», justificou um militar australiano que bloqueou o portão da residência do bispo, onde nos encontrávamos, com uma viatura de combate. 

Horas depois, à luz do dia, vindos dos vários aquartelamentos, milhares de militares indonésios percorreram a pé a marginal de Díli em duas filas contínuas, em direção ao porto. Horas tensas. A imagem ajudava a virar simbolicamente uma página na história. Era a saída do ocupante, 24 anos depois. 

Enquanto se dirigiam para o porto, os militares mantinham o silêncio. Eram apupados por pequenas multidões à beira da estrada. Levavam tudo o que podiam, usavam cadeiras rolantes ou carrinhos de supermercado para transportar sacos cheios, televisões, aparelhagens de som, móveis. 

A retirada indonésia foi acompanhada de perto pela INTERFET, com helicópteros que durante horas sobrevoaram a marginal. Controle apertado para evitar confrontos. 

Depois das tropas apeadas, passaram as viaturas militares e foi visível um quase incidente que gerou uma ruidosa reação de protesto entre a multidão. Cena de filme. Um dos militares, na parte de trás de uma viatura, instantes antes de cruzar o portão de acesso à zona portuária, apontou a arma à multidão em aparente desafio. Ato contínuo, um superior hierárquico, mais jovem, foi imediatamente ao encontro dele, baixou-lhe a arma, gritou e esbofeteou-o. As ordens de comando estavam a ser cumpridas. Uma acha que fosse e seria uma tragédia.

Quando terminou a movimentação, acercaram-se jovens com bandeiras de Timor-Leste e da FRETILIN (Frente Revolucionária de Timor-Leste Independente), em salvas de liberdade. Havia quem apontasse para o porto a denunciar roubos. Do lado de lá embarcavam-se também jipes, motorizadas e outras viaturas civis. 

Nas imediações, em contra cenário, ficava o hotel Mahkota, ou o que dele restava depois de ser destruído. Fora um dos centros nevrálgicos no processo referendário, alojamento de jornalistas e membros da UNAMET. 

Díli viu depois a chegada de milhares de pessoas que se refugiaram nas montanhas nos dias da indefinição. Entre elas, gente que fora dada como morta ou desaparecida durante os tumultos. 

No estádio de Díli seria celebrada missa campal com dezenas de fiéis e colunas de fumo no horizonte. O altar foi colocado no círculo central do campo de futebol, com imagens religiosas, uma de N. Sra de Fátima. 

Instalara-se ali, junto às bancadas, uma ONG de assistência médica, um ‘hospital de campanha’. Durante a tarde foi o que valeu ao Manuel Almeida, repórter fotográfico da LUSA. Estávamos na estrada lateral a reportar a grande movimentação de pessoas, depois de mais uma operação das forças multinacionais junto a um edifício que ardia. De repente, o Manuel desapareceu. Estava ao meu lado e, num instante, deixou de estar. Caiu num poço de esgoto destapado. Provavelmente preocupado com o melhor foco, não deu pela armadilha a céu aberto. Gritou, lá em baixo. Puxei-o com a ajuda de jovens que ali passavam. Tinha uma fratura exposta na perna. Ao grande Manuel valeu a força distribuída pelos muitos que acudiram e a proximidade aos médicos no estádio. Notei-lhe a tristeza quando o visitei pela última vez nas instalações hospitalares militares em Díli. Tinha de ser transportado para a Austrália.

A profecia e o trauma

Com o regresso de D. Ximenes Belo a Díli, os jornalistas portugueses tiveram de deixar o complexo da diocese. Na manhã em que saí, ‘madre’ Margarida estava sentada junto à mesa onde diariamente as religiosas colocavam um termo de café filtrado em pano de loiça. Era o nosso melhor despertar, escasseava quase tudo. Entreguei-lhe roupa e os bens alimentares que ainda tinha. Mostrei-lhe a pagela e o ‘terço’ que encontrara à chegada, não fosse por um acaso saber de quem eram os objetos. Disse-me – na verdade foi mais uma ordem… – para os guardar e não esquecer Timor-Leste. Levantou-se, pediu para eu esperar um pouco e afastou-se ao ritmo lento que as pernas permitiam. Regressou com um tais de algodão, fundo negro, bordado a cores vivas e finas linhas douradas, que me colocou aos ombros. «O Joaquim vai, mas vai voltar com a sua esposa, com a família, para conhecer Timor diferente». A profecia de “madre” Margarida está por cumprir.

Deixei Timor-Leste quando Vieira de Melo chegou para liderar a UNTAET. Regressei a Portugal com o Alvarez, que foi justamente saudado por camaradas e amigos na chegada ao aeroporto de Lisboa. 

Era véspera do batizado da minha filha mais nova, que deixara em Lisboa com pouco mais de um mês de vida. Desci discretamente a rampa, acelerado pela ansiedade do reencontro. Não esqueço o rosto da pequena. Olhou-me como se fosse um estranho. É um trauma que ainda carrego… 

Camaradas no ofício

Percorrendo a memória traiçoeira de quase 38 anos de ofício, foi a experiência mais impactante. Se 26 anos depois não me entendo sem Timor-Leste, é porque naqueles meses vi, ouvi ou cruzei-me no terreno com muitos camaradas. Recordo os portugueses, alguns já não estão entre nós. Não tendo todos na memória, que todos se sintam lembrados: Luciano Alvarez, Jorge Araújo, José Vegar, Hernâni Carvalho, Manuel Acácio, Carlos Vaz Marques, José Carlos Barreto, António Sampaio, José Rodrigues dos Santos, Margarida Martins, Gonçalo Prego, Mário Antunes, António Veladas, João Pedro Matoso, Maria José Garrido, João Pedro Henriques, João Paulo Guerra, Cândida Pinto, João Duarte, Pedro Sousa Pereira, Fernando Faria, Paulo Camacho, Renato Freitas, João Completo, Rui do Ó, João Carlos Barradas, Manuel dos Santos, Mário Ramires, Daniel Catalão, Ana Fonseca, Pedro Mesquita, Anabela Góis, Luís Castro, Leonel de Castro, Manuel Almeida, José Maria Cyrne, Paulo Jerónimo, Sérgio Pinheiro, Miguel Cabral de Melo, Carlos Rodrigues, Francisco Prates, Jorge Costa, Bento Rodrigues.

Julgo não abusar se disser que Timor-Leste nos confrontou com a deriva literária de Ryszard Kapuściński. O direito a contar uma estória adquire-se com «conhecimento direto, físico, emotivo, sem filtros nem escudos protetores sobre aquilo de que falamos» e «é errado escrever sobre alguém com quem não partilhamos pelo menos um pouco da sua vida».