Vi, há muitos anos, em Basileia, na Galeria Beyeler (hoje Fundação Beyeler), uma exposição intitulada Who’s Afraid of Red. A designação provinha de Who’s Afraid of Red, Yellow and Blue, uma série de quatro telas, de grandes dimensões, do artista norte-americano Barnett Newman, realizadas entre 1966 e 1970. O nome evoca a peça Who’s Afraid of Virginia Woolf? (1962), de Edward Albee, que, por sua vez, aludia à canção Who’s Afraid of the Big Bad Wolf?, do filme de animação da Disney, Os Três Porquinhos.
Quem nunca teve medo do vermelho foi Henri Matisse, cuja tela L’Atelier Rouge (na imagem), de 1911, é considerada uma das obras mais influentes da arte moderna. Cor do sangue, das cerejas e do rubi, o vermelho – cardeal, Ferrari ou de cabaret – é mais do que coloração: é uma linguagem. Símbolo de amor, guerra, fé, revolução, sedução e proibição, é a cor mais intensa, contraditória e culturalmente rica da história da humanidade. Do batom escarlate à passadeira vermelha, das conotações religiosas à alta-costura, o vermelho – ou encarnado, para quem preferir – marca presença em todas as esferas da vida. Ao contrário do azul, não pede licença, impõe-se. Cor do desejo e da excitação, evoca pulsação vital, entrega emocional e romance, mas também fúria e belicismo. Sinal de alerta e de ‘pare!’, brilha no semáforo e ondula na bandeira da praia. Emblema do espírito combativo dos povos e do sangue derramado, ergue-se nos estandartes nacionais. Cor de luta, foi adotada pelos comunistas – mas também pelos republicanos nos EUA.
Visível ou metafórico, está em toda a parte, marcando lugares, tradições e ideias: Mar Vermelho, Planeta Vermelho, Capuchinho Vermelho e Praça Vermelha (no russo antigo, a palavra para ‘vermelho’ e para ‘bonito’ era a mesma: krasnaya). Em Stendhal, pulsa na paixão e na ambição; em Conan Doyle, deambula entre o crime e o mistério; em Jung, revela os recantos mais profundos da mente.
Símbolo, tinta, ou palavra, o vermelho não se esconde: invade, provoca e persiste. Clamando vitalidade, fertilidade e prosperidade, é a cor dos casamentos e dos hongbao chineses – envelopes com dinheiro oferecidos em ocasiões festivas. Sangue de Cristo e Espírito Santo, representa, no cristianismo, vida, sacrifício e regeneração espiritual. Em religiões africanas e rituais indígenas, invoca o sangue como essência vital ou a terra como princípio sagrado. Alegoria da criação e da destruição, do calor e do fogo, tinge os pores do sol e as fúrias vulcânicas. Na moda, Louboutin deu-lhe novos contornos: é luxo e exclusividade em solas de sapatos.
Para colorir, a paleta é vasta e nem sempre inofensiva: o vermelhão, o célebre vermilion, obtido a partir do cinábrio, mineral composto por sulfureto mercúrico; o zarcão (tetróxido de chumbo); ou o vermelho de cádmio (uma combinação de sulfureto e seleneto de cádmio) – todos eles tóxicos. Entre os pigmentos à base de óxidos de ferro, sobressaem o vermelho Pompeia, profundo e acastanhado; o vermelho Veneza, quente e alaranjado; o vermelho indiano e o vermelho de Marte, ambos de matizes terrosos. Há ainda o vermelho Congo, corante sintético utilizado na coloração de materiais biológicos para observações ao microscópio, e o vermelho de alizarina, que António Gedeão imortalizou num arremedo da Leonor camoniana, que descalça ia para a fonte com «Fita de cor de encarnado» e «Cinta de fina escarlata». A versão do século XX, porém, vai de lambreta para a praia e «Leva calções de pirata, Vermelho de alizarina». Se este é extraído da raiz da Rubia tinctorum (planta conhecida como garança), já o carmesim – corante de tom vermelho forte e brilhante – provém de um inseto, o Kermes vermilio, cujo nome remonta ao persa qirmiz, que significa ‘vermelho’.
É também em tons escarlate que Cesário Verde, em registo impressionista, remata o poema De Tarde: «Mas, todo purpuro, a sair da renda / Dos teus dois seios como duas rolas, / Era o supremo encanto da merenda /O ramalhete rubro de papoulas!». No universo dramático, em Vermelho, peça do norte-americano John Logan que esteve recentemente em cena no nosso país, o personagem que encarna o pintor Mark Rothko, ao expor as suas ideias sobre arte, confessa: «Só há uma coisa que temo na vida, meu amigo… Que um dia o preto engula o vermelho».
Químico