Uma destas manhãs, aqueci demasiado o leite do meu filho e, enquanto instintivamente o passava de uma caneca para a outra, dei por mim a pensar nessa técnica milenar, que vi ser usada vezes sem conta durante a infância e que agora está em vias de extinção.
A explicação para a extinção é simples: para aquecer o leite que está no frigorífico à temperatura ideal, basta programar o micro-ondas para 30 segundos; no caso de o leite estar à temperatura ambiente, reduz-se para 20 segundos. Não há como enganar – a não ser que estejamos a pensar na melhor forma de montar o Tetris do dia e troquemos o tempo do leite com o da sopa (60 segundos), como foi o caso.
Foram muitas as vezes em que vi o leite a passar de caneca em caneca durante a infância, em que fiquei nauseada com natas indesejadas, em que queimei a língua. Com ou sem sorte, as crianças de hoje raramente passam pelo mesmo.
A sua vida, em alguns aspetos, decorre inevitavelmente numa espécie de micro-ondas, de forma igual e previsível.
Muitas das situações que ocorriam naturalmente e com regularidade, causando-nos uma série de contratempos e aborrecimentos, obrigando-nos a fazer escolhas e a encontrar soluções ou alternativas, passaram à história com o uso das tecnologias.
Todos estes imprevistos, como o leite demasiado quente, frio ou cheio de natas; a espera pelo episódio seguinte da nossa série favorita que só acontecia na semana seguinte; os encontros feitos de véspera que não precisavam de ser confirmados 50 vezes e que por vezes implicavam intermináveis horas de incerteza; os enganos a encontrar caminhos que nos levavam a outros novos ou o autocarro que não sabíamos se já tinha passado ou se ainda ia passar, faziam parte da nossa experiência. Era um mundo de incógnitas e frustrações, para as quais tínhamos de encontrar alternativas. Com que lidávamos constantemente e que nos preparavam para a imprevisibilidade da vida noutras situações que implicavam mais do que queimar a língua.
E por isso, quando os jovens chocam com inconvenientes, ou com alguma situação imprevista, nem sempre têm as ferramentas certas bem limadas. E, por vezes, a insegurança e a ansiedade abatem-se sobre eles de forma implacável e por vezes paralisante.
Não há dúvida de que a tecnologia nos trouxe uma série de confortos e de benefícios, para além do leite sem natas. Mas, em troca, roubou-nos algumas capacidades, como a de reagir à frustração ou ao inesperado, o que pode limitar o desenvolvimento emocional quando somos confrontados com situações que escapam ao nosso controlo.
É neste contexto que os adultos que ainda viveram no tempo em que a incerteza imperava têm o dever de reequilibrar a balança entre o suporte da tecnologia e a promoção da autonomia emocional.
Se o leite for sempre servido à temperatura ideal, sem alterações ou percalços, é natural que, quando chegar um pouco mais quente e se queimarem pela primeira vez nos imprevistos da vida, não saibam como reagir.