Requalificação para hotel ameaça palácio pombalino do Chiado

Única moradora do Palácio Valadares, junto ao Largo do Carmo, acusa Grupo Pestana de querer destruir abóbadas históricas. Empresa diz que vai ‘conciliar conservação e revitalização’.

Ao cimo da Calçada do Sacramento, em pleno Chiado lisboeta, ergue-se o Palácio Valadares, célebre edifício pombalino com óbvios sinais de degradação. O imóvel corre o risco de ser adulterado para poder transformar-se em hotel, acusa uma moradora. O grupo Pestana, uma das maiores marcas hoteleiras do país, pretende instalar no palácio uma das suas Pousadas de Portugal, que supostamente terá 80 suítes.

O edifício está em regime de propriedade horizontal e tem como condóminos lojas de rua e uma única moradora: a professora universitária Célia Costa Cabral, que é proprietária de uma fração do palácio e ali reside há cerca de 15 anos. Queixa-se de «falta de informação e de diálogo» por parte do grupo Pestana e da Câmara de Lisboa. Teme que o ruído das obras de requalificação vá perturbar o seu dia-a-dia e defende que o projeto implica a destruição de elementos arquitetónicos históricos, incluindo tetos em abóbada.

Fonte oficial do grupo Pestana disse-nos esta semana que o palácio está «devoluto, sem qualquer utilização e em risco de degradação» e que pretende «conciliar a conservação do património com a sua revitalização e devolução à cidade». Explicou ainda que «aguarda licença de construção», mas que já deu início a «trabalhos de limpeza e outras situações preparatórias da construção».

Célia Costa Cabral rebateu a ideia de prédio devoluto e garantiu-nos que está pronta para recorrer à Justiça. «Se começarem as obras vou pedir o embargo. A decisão de mudança de uso num edifício destes tem de ser tomada por unanimidade dos condóminos e a mim ninguém me pediu opinião».

A Câmara de Lisboa informou-nos de que já aprovou a alteração do uso urbanístico do imóvel e contrapôs que está a respeitar o regulamento aplicável, que é o do Plano de Pormenor de Recuperação da Zona Sinistrada do Chiado. Sublinhou que «a aprovação de uma operação urbanística não interfere com eventuais direitos privados que possam existir, nem isenta o seu titular de responsabilidade por eventuais danos causados a terceiros».

De acordo com os serviços camarários, a operação urbanística foi aprovada em abril último, depois de o grupo Pestana ter feito a «correção do cromatismo da caixilharia», único requisito que estava desconforme.
A maior fração do Palácio Valadares, onde poderá ser instalada a unidade hoteleira, funcionou durante décadas como escola pública, e ainda hoje pertence ao Estado, através da imobiliária pública Estamo. A fração foi arrendada ao grupo Enatur em 2022, já com o objetivo de instalar uma Pousada de Portugal, o que entretanto levou a Enatur a ceder a sua posição contratual ao grupo Pestana, disse-nos fonte oficial da Enatur.

A professora sustenta que as obras de adaptação do palácio a Pousada de Portugal implicam a demolição de tetos em abóbada a fim de se instalar um elevador de serviço. «As abóbadas não podem ser destruídas porque estão numa área comum do edifício, que não está sequer abrangida pela fração que o Grupo Pestana arrendou, e porque o palácio integra uma área classificada». De facto, segundo a Câmara, o Palácio Valadares está incluído no Conjunto de Interesse Público da Lisboa Pombalina e faz parte do Conjunto Arquitetónico do Largo do Carmo.

Célia Costa Cabral marcou uma reunião de condóminos para a última quarta-feira, tendo convocado um representante do Estado, que não compareceu, e outro do grupo Pestana. Este último, além de arrendatário é também condómino, pois comprou recentemente uma das lojas de rua que fazem parte do palácio. «O representante do grupo Pestana disse que até agora não tinha falado com os outros condóminos por achar que não era a altura certa», resumiu Célia Costa Cabral acerca de reunião. Ficaram de marcar novo encontro dentro de dias.

A queixosa trabalha a partir de casa durante vários dias por semana e está preocupada com o ruído e a duração das obras, que estima poderem durar dois a três anos. Além disso, não se vê a partilhar o prédio com um hotel, por causa do movimento que tal negócio implica, com entradas e saídas 24 horas por dia e possível barulho a qualquer instante.

O Palácio Valadares tem uma longa história que começa há mais de 700 anos. Por volta de 1290, a parcela era ocupada pelo Estudo Geral de D. Dinis, embrião da Universidade de Lisboa.

Em meados do século XVII, já ali se erguia um edifício semelhante ao atual, que era residência do conde de Valadares. Reconstruído após o Terramoto de 1755, sucumbiu novamente em 1798, devido a um grande incêndio.
No início do século XX, o imóvel saiu das mãos da família Valadares, que o vendeu em leilão ao empresário Baltasar Rodrigues Castanheiro, fundador da Confeitaria Nacional. Em 1941, instalou-se ali a Escola Veiga Beirão, que ficará por longas décadas, até 1996.

Entretanto, o edifício passou para o património da Parque Escolar, que em 2017 o transferiu para a Direção-Geral do Tesouro. Foi nesta data que saíram as primeiras notícias de que o Grupo Pestana pretendia transformar o imóvel em Pousada de Portugal. Finalmente, o palácio passou para a Estamo.