A‘chumbagem’ do cabo à carruagem n.º 1 do elevador da Glória, através de uma liga metálica, foi mal-executada por funcionários da Carris, em finais de setembro do ano passado. O Gabinete de Prevenção e Investigação de Acidentes com Aeronaves e Acidentes Ferroviários (GPIAAF) detetou, «no interior da fundição, a existência de zonas bastante menos densas, ou mesmo vazias». Os engenheiros chamam ‘chochos’ a esses vácuos. São sinónimo de perigo grave, porque enfraquecem substancialmente a amarração à cabine. No limite, podem causar o desprendimento do cabo.
A fixação do cabo às carruagens é feita, há cem anos, em plena rua, nas calçadas que dão nome aos elevadores da Glória e do Lavra. Trata-se de um processo artesanal, do qual resulta uma peça fundida, conhecida entre os funcionários da Carris como ‘pinha’. «Embora já haja soluções mais modernas, nomeadamente utilizando resinas especiais, este modo de fixação ainda é um método de uso relativamente comum em cabos de aço, quer tenham alma no mesmo material ou em fibra», descreve o Relatório Preliminar sobre as causas do acidente.
Uma ‘pinha’ bem feita teria de ser compacta, passando a ‘fazer parte’ do cabo, formando com ele uma unidade indestrutível. «Desde que executada de forma adequada, assegura uma resistência pelo menos igual à do cabo», reconhecem os investigadores. O Nascer do SOL sabe que os funcionários da Carris suspeitaram da ‘pinha’ logo a seguir ao acidente.
Uma radiografia, por raios gama, executada por ordem do GPIAAF, confirmou o fundamento desse receio. Os ‘chochos’ detetados indiciam que o processo artesanal foi mal-executado, como a TVI avançou em 26 de setembro. A pinha vai agora ser sujeita a uma «análise aprofundada, em laboratório especializado». Esse exame complementar de diagnóstico é necessário para a assunção dos problemas de fabrico artesanal como causa próxima do acidente.
Manutenção incompetente
A execução da ‘pinha’ é da responsabilidade da empresa Main/MNCT, concessionária do serviço de manutenção aos funiculares desde 2019. É o que está escrito no contrato. Os investigadores devem ter ficado surpreendidos, porque «gestores, quadros técnicos e trabalhadores do prestador de serviços declararam desconhecer a composição exata da liga de fundição da pinha e demais detalhes concretos da sua execução».
O relatório não identifica quem fez a ‘pinha’, trabalho que será mais da esfera de competências do Ministério Público. O Nascer do SOL sabe que continuava a ser um trabalho artesanal de operários da Carris, transmitido ao longo de gerações. É um procedimento delicado, que envolve múltiplos riscos, ainda para mais sendo executado ao ar livre, o que o deixa exposto a condições climatéricas adversas, como chuva ou calor extremo.
O diabo tem muitas oportunidades para se intrometer nos detalhes do procedimento. Primeiro, é preciso destrançar, um a um, os fios do cabo, sem partir qualquer deles. Essa ‘flor de arames’, na extremidade do cabo, é mergulhada num ácido de limpeza e depois em estanho. A etapa final consiste na fusão da flor numa peça cónica, com recurso a uma liga metálica, a baixa temperatura, preparada no momento.
A segurança impõe o controlo rigoroso de cada etapa, da duração do banho de limpeza à temperatura exata da fusão. Há normas técnicas europeias para isso. São de uso obrigatório, mas nunca foram aplicadas aos cabos dos funiculares de Lisboa. Tudo o que existe é «um antigo caderno, escrito por um técnico, para transmitir o seu conhecimento e experiência aos trabalhadores mais novos, documento este que não faz parte do sistema documental da empresa».
A ‘pinhas’ eram feitas a olho e aceites acriticamente, com fé em Deus e pés fiados na experiência. Não eram radiografadas – como foram agora, por iniciativa do GPIAAF – «nem sujeitas a qualquer teste, a fim de comprovar a qualidade da fundição e da ligação do cabo à cabina».
Para além do controlo mensal da consistência da fundição, as ‘pinhas’ deveriam ser objeto de inspeção visual com a mesma periodicidade, o que implicava parar os elevadores durante dois dias. Onze inspeções dessa natureza, entre outubro de 2024 e agosto de 2025, provavelmente teriam evitado a tragédia.
De acordo com as normas, «a inspeção da zona do cabo junto à pinha é especialmente crítica». Como previsto na literatura científica, o cabo do elevador da Glória deu muitos sinais de perigo, mas nunca ninguém os viu. «Uma análise macroscópica das extremidades dos cordões rompidos evidencia roturas progressivas, portanto ocorrendo gradualmente ao longo do tempo», descreve o relatório. Aos 337 dias de utilização, «rompeu-se dentro do destorcedor do trambolho superior, a poucos centímetros da sua pinha de amarração».
O prestador de serviços de manutenção nunca aplicou ou sequer propôs o cumprimento das normas europeias, nem sugeriu à Carris quaisquer outras melhorias, até porque «não conta com o necessário corpo de Engenharia, com o conhecimento técnico especializado».