Em Las Meninas, Velázquez pinta-se a si mesmo a pintar; em Hamlet, Shakespeare faz representar uma peça que repete o crime da tragédia; e, em Dom Quixote, Cervantes cria personagens que leem o primeiro volume da sua própria obra. Chama-se a isto mise en abyme, expressão adotada pelo francês André Gide, recipiente do Prémio Nobel da Literatura em 1947, e que se pode traduzir como ‘inserção em abismo’. Gide não fez mais do que apropriar-se da expressão da heráldica medieval mettre en abyme – que significava literalmente colocar um escudo no centro de outro maior, como repetição simbólica do brasão principal –, reinterpretando-a no contexto literário e artístico.
Arte que se pensa a si mesma, reflexo tornado consciência – a mise en abyme é a tentação de se contemplar a si própria. Richard Strauss, em Ariadne auf Naxos, compõe uma ópera dentro da ópera; Leoncavallo, em Pagliacci, faz o drama repetir-se no palco; em La Reproduction interdite, Magritte pinta o espelho que devolve as costas do modelo; e, na atualidade, a artista japonesa Yayoi Kusama constrói salas infinitas de espelhos, onde o visitante entra no próprio reflexo.
No início do século XX, a marca holandesa de cacau Droste lançou uma lata cujo rótulo mostrava a imagem de uma enfermeira a segurar… uma lata idêntica. Nesta, repetia-se a mesma figura, e assim sucessivamente, como se o olhar se perdesse num túnel sem fim. O fenómeno ficou conhecido como efeito Droste: a imagem dentro da imagem. Também os populares queijos franceses La vache qui rit exploram o mesmo princípio, exibindo no rótulo a vaca sorridente com brincos que são, eles próprios, pequenas caixas do mesmo queijo – uma brincadeira visual que, tal como no caso do cacau Droste, transforma o produto em metáfora do infinito. Décadas depois, o artista holandês M. C. Escher recorreu à mesma ideia em Print Gallery, uma litografia em que um jovem, numa galeria de arte, observa um quadro que contém a galeria que o contém a ele.
Mas o espelhamento não termina nas artes. A Natureza também se repete. O matemático francês de origem polaca Benoît Mandelbrot mostrou que muitas formas naturais – costas marítimas (a sua célebre pergunta «How long is the coast of Britain?» dá título a um artigo publicado em 1967 na revista Science), nuvens, montanhas, flocos de neve, folhas de fetos ou a couve-romanesco – obedecem a leis de auto-semelhança. Cada parte repete o todo a diferentes escalas.
Essas figuras, descritas matematicamente por equações iterativas – relações que se repetem sobre si mesmas –, são conhecidas como fractais: estruturas de complexidade infinita criadas por fórmulas simples. Mandelbrot cunhou o termo a partir do latim fractus (’partido’, ‘irregular’), para designar uma geometria fora da tradição euclidiana – baseada em dimensões inteiras (1D, 2D, 3D) – capaz de descrever a irregularidade do mundo natural.
Nos fractais, cada forma parece uma linha que, ao ser ampliada, revela novos detalhes, rugosidades e dobras, tornando-se quase uma superfície. Daí se falar de uma dimensão fractal: um valor intermédio entre linha (1D) e superfície (2D). Uma curva de costa marítima, por exemplo, pode ter uma dimensão entre 1 e 2 – mais que uma linha, menos que uma superfície.
Dos ramos das árvores aos bronquíolos dos pulmões, das formações geológicas às redes digitais, a geometria fractal tornou-se essencial para compreender e modelar sistemas complexos, revelando como a própria lógica natural inspira a organização de estruturas artificiais baseadas em padrões de repetição. O que o efeito Droste faz com a imagem e a mise en abyme com as artes, o fractal faz com o mundo: repete-se para existir. Ao contrário do reflexo, que devolve o mesmo, o fractal gera a sua própria semelhança – é um espelho que se constrói por dentro, uma máquina de infinito.
O Universo parece gostar de se ver repetido. Nós continuamos o exercício: repetimo-nos, no pessoal e no coletivo, com selfies, hashtags e memes – como nas salas infinitas de Kusama, onde a multidão se fotografa dentro do próprio infinito. Há, contudo, uma diferença essencial: o mundo repete-se por condição; nós, por vaidade, e – para não ir mais longe – talvez por medo de sermos únicos. Afinal, talvez a vaca ria de nós.
Químico