Com apenas 24 anos, Beatriz Narciso, foi a vencedora da 1º edição da WAF – Women in Art Fellowship, bolsa que apoia jovens artistas femininas. É sobretudo no quotidiano que se inspira, em particular na vida noturna, onde acredita que as pessoas ‘mais se revelam’. É através da luz e sombra que comunica como se quisesse criar uma espécie de intimidade com aqueles que observam o seu trabalho

Escreveu Fernando Namora: «A noite caiu sem manchas e sem culpa./ Os homens tiraram as máscaras de bons actores./ Findou o espectáculo. Tudo o mais é arrabalde./ No alto, a utópica lua, vela comigo/ e sonha inutilmente com a verdade das coisas./ – Noite! Deixa-nos também dormir». E Beatriz Narciso concorda e é nela que se inspira para as suas criações: «É à noite que as pessoas se revelam mais», afirma à VERSA. A jovem artista lisboeta de 24 anos gosta de observar a noite, os rostos que vivem nela, transportando-os depois para a tela num jogo de luz e sombra que nos faz interrogar se estamos diante de um quadro ou de uma fotografia. O seu trabalho consiste, por isso, na representação do quotidiano, revelando as múltiplas alterações que ocorrem na perceção do mesmo e na construção de uma relação entre o registo de imagens e sua configuração/plasticidade final.

A verdade é que Beatriz fotografa os momentos com os olhos (ou com uma câmara) e a forma como depois faz nascer cenários numa folha em branco valeu-lhe a 1.ª bolsa anual Women in Art Fellowship (WAF), destinada a apoiar e dar visibilidade a mulheres artistas emergentes em Portugal. Promovida pelo Freeport Lisboa Fashion Outlet e pelo Vila do Conde Porto Fashion Outlet, em parceria com a SOTA – State of the Art e a Portugal Manual, a bolsa tem um valor de 27 mil euros e conta com Joana Vasconcelos como madrinha desta primeira edição. 

Durante o último trimestre de 2025, Beatriz participará num ciclo de mentorias de acompanhamento exclusivas que apoiarão o desenvolvimento do seu projeto artístico, cuja exposição surge no início de 2026. Antes disso, irá realizar, em novembro, uma exposição coletiva em conjunto com as nove finalistas da WAF, num novo espaço expositivo do Vila do Conde Porto Fashion Outlet. 

A importância da identidade artística 

Segundo o júri do concurso, o projeto da jovem «destacou-se pela profundidade conceptual e pela forma poética como reflete sobre o tempo, a memória e a resiliência humana, uma homenagem ao passado e um olhar sensível sobre o que faz seguir em frente». «Fui a finalista mais nova. Disseram-me que apesar de, obviamente, haver margem para crescimento, que eu já tinha uma data de características e de estéticas muito presentes e únicas. Isso foi um ponto fulcral para dizerem que há consistência no meu trabalho», revela. «Além de originalidade e criatividade, eles procuravam identidade. Isso começou logo com a primeira masterclass que tivemos, onde falámos de identidade artística, da nossa persona artística. Aquilo que seria mais honesto de mostrar ao mundo. Isso foi se prolongando até ao anúncio da vencedora», explica. Beatriz tentou ir ao encontro dos critérios que a bolsa pedia, tendo em conta as palavras de Joana Vasconcelos: «Sejam o mais original possível e puxem pelas vossas capacidades». 

A artista não se lembra como começou a paixão pelas artes. «Sei que foi mesmo muito cedo», garante. «Os meus pais sempre me incentivaram a usar o lápis e o papel e tive oportunidade de ter materiais disponíveis em casa que não eram aqueles pacotes ‘rascas’ que davam às crianças (risos). A minha mãe é designer de comunicação. Antes disso ela também experienciou têxteis, também esteve em pintura em Belas Artes, então sempre tive muito material disponível e ela deixava-me explorar isso. O meu pai é professor de ciências e também sempre incentivou», conta.

Isso foi puxando cada vez mais por si, até que entrou na Escola Artística António Arroio, em Lisboa. «Pude seguir RPE – Realização Plástica do Espetáculo. Uma arte mais direcionada aos figurinos e à cenografia. Aprendi um pouco de tudo. Aprendi a trabalhar com madeira, com metal, a usar uma máquina de costura. Mas o que mais me chamou a atenção foi a pintura, a caracterização. Depois de esculpir eu podia fazer as sombras, aplicar todas as técnicas que aprendi desde nova», lembra. Depois, foi para a Escola Superior de Artes e Design das Caldas da Rainha, onde se formou em Artes Plásticas. «Continuei a pintura, foi sempre o meu foco, acho que é a área em que eu tenho mais coisas a dizer. Acabei a licenciatura em 2022, já tinha 21 anos e tive a proposta de fazer uma residência artística em Marvila. Fiquei lá até o espaço ser vendido. Os artistas estavam lá a trabalhar e era aberto ao público. Isso abriu-me portas para poder continuar a fazer aquilo que queria e ter logo uma perceção do público», refere a jovem. Logo no primeiro ano conseguiu fazer duas vendas. «Para o primeiro ano de carreira consegui ter uma notória visibilidade e facilidade para trabalhar, o que muitas pessoas não têm. Isso deixou-me bastante confortável. Obviamente que sendo partilhado com outros artistas também me permitiu crescer», admite. Agora está no Lumiar num espaço cultural e partilhado.

Interrogada sobre o porquê do fascínio pela pintura, Beatriz acredita que tenha nascido muito por conta das suas idas a museus. «Desde muito cedo pude ir a museus, os meus pais também nutriam esse gosto. Levaram-me a vários e a maior oferta era pintura. Eu simplesmente ficava abismada a pensar o porquê e como é que a pintura tocava tanta gente. Comecei a pegar nos livros, a ler sobre a profecia da pintura, os manifestos da vanguarda. Tudo me fez sentido. Foi sempre uma coisa muito natural. Nunca me questionei muito. Comecei a fazer, na verdade. Sempre me fez sentido», afirma.

Referências, inspirações e técnicas

Tal como referido anteriormente, as suas referências mais diretas acabam por ser aquilo que observa no meu dia-a-dia – espaços, locais, comportamentos e atmosferas. Porém, a artista tem-se focado na noite. «Eu inspiro-me muito no dia-a-dia de cada pessoa. Eu observo muito, principalmente à noite. Acredito que é à noite que as pessoas se revelam mais. Vejo a atividade humana que me interessa, foco em momentos que mais me interessam, às vezes acabo por tirar fotografias e depois chego ao meu estúdio e altero ou acentuo certas características que quero passar daquele momento», adianta. «Eu acabo por tentar tirar um pouco de tudo de qualquer artista que goste ou que possa vir a conhecer. Tento beber em vários lados. Mas se eu tiver que dizer alguém como ponto de partida principal (uma referência) e que se assemelhe ao meu trabalho, sempre foi o artista americano Edward Hopper. Ele trabalhou muito bem uma realidade paralela dos EUA… Havia o American Dream, mas ele dava uma ideia muito solitária do país. Remava contra a maré daquilo que se queria promover numa altura específica. E também todo o trabalho da luz e da sombra. É uma coisa que me chama muito», sublinha. 

Relativamente às técnicas que utiliza, Beatriz explora a luz, a cor e os diálogos dicotómicos de cada peça, de acordo com os temas. Utiliza o acrílico ou o óleo sobre linho e utiliza uma linguagem mais realista. «A luz e a sombra sempre foram um conceito presente na humanidade e é a partir delas que nós conseguimos ver concretamente, ou não, aquilo que está à nossa frente. Isso conta muito. Em cinema uma pessoa pode ter a mesma composição, mas se alterar a cor e a luz, está a contar imensas histórias diferentes. Só a partir de um plano! Isso interessa-me muito. É exatamente isso que eu também acabo por fazer. A intenção e o contexto são importantes. Eu demonstro isso através da luz e da sombra. Podemos dramatizar mais, dar mais ênfase àquilo que vemos ou não vemos. Aquilo que é omitido a partir do escuro também nos diz muito», detalha. A intimidade e a memória também são duas coisas que estão sempre presentes nos seus trabalhos. «A luz e a sombra são a representação visual mais presente em nós», frisa. 

A obra que mais gosta é intitulada: ‘Quem fica é quem perde’. Faz parte da sua coleção noturna e foi a primeira vez que se «colocou na tela». «É uma espécie de autorretrato. Vê-se o meu rosto mas não se vê tudo. Está quebrado. Foi numa altura de mudanças tristes na minha vida. Há situações na nossa vida em que decidimos ficar, mas já devíamos ter partido. Essa é a obra que eu mais gosto», admite apesar de considerar que «é mais difícil olharmos para nós do que para os outros». «Eu acabo por achar que não sou uma pessoa assim tão interessante. Prefiro contar a história dos outros», diz entre risos.

O foco no presente 

Para Beatriz Narciso esta bolsa «significa muito». «Essencialmente foi aquela validação externa… Além disso, é saber que agora tenho esta responsabilidade de continuar e dar impulso a tantas outras mulheres que fazem o mesmo que eu. Que têm essa ambição e vontade. Não interessa a idade, onde estás, quais os teus problemas, o que importa é que estás aqui para isto e se tu acreditas mesmo nisso e queres mesmo ser artista, eu sou mais uma prova que tens de continuar. Eu estou mesmo muito grata. Vou dar o meu melhor», garante. 

Sobre as expectativas para o futuro, a artista tenta não pensar muito nisso. «O futuro assusta um bocadinho, mas eu tento não pensar necessariamente naquilo que pode acontecer daqui a, por exemplo, cinco anos. Penso mais naquilo que posso fazer agora. Acho que focando no presente, isso ajuda a colher mais limões no futuro. Sempre fiz isso. Se estivesse sempre a ansiar pelo dia de amanhã se calhar ficava mais presa e acumulava muita coisa», acredita. Por isso, para si, «a ação é importante». «Quero fazer mais e melhor. A cultura não pode ser vista como um setor à parte, porque não é! A sociedade não funciona sem cultura. Há sempre uma urgência de criar e fazer. Os artistas têm essa magia. A política e a arte andam de mãos dadas. Se eu estiver a falar de uma artista que trabalha um ambiente isso também é política. Para os artistas que falam de uma forma mais abstrata e filosófica, isso também é política. O que é que estamos aqui a fazer? É a política do ser e do estar. Isso também é importante», remata. 

Para esta edição foram recebidas mais de 200 candidaturas e selecionadas dez concorrentes finalistas. Além de Beatriz Narciso (pintura), foram também finalistas da bolsa: Ana Leça (pintura, instalação, desenho), Elizabeth Prentis (performance, escultura, instalação), Flávia Costa (desenho), Ilfu-Soi Studio (Jéssica Ilfu-Soi, com escultura), Joana Dionísio (fotografia), Joana Paraíso (pintura, desenho), Patrícia Pettitt (fotografia), Vânia Reichartz (têxtil, instalação, escultura) e Vera Fonseka (pintura e colagem).

Segundo Marta Duarte da Krausz Studio, no fundo, agora a Beatriz tem dois desafios. «Não só existirá uma exposição coletiva das dez finalistas, como esta fase final de acompanhamento da bolsa, que está apenas focada e dedicada à Beatriz. Ela terá as últimas masterclasses para o desenvolvimento do seu projeto próprio que depois terá de resultar numa exposição em 2026. Este é o desafio seguinte. Costumamos dizer a brincar: ‘Agora é que a aventura começa!’. A partir daqui tudo se vai concretizar, porque até agora ela esteve a desenvolver um projeto que foi o vencedor. Este projeto vai agora ganhar forma para chegar a uma exposição em nome individual», sublinha.