A tirania da liberdade absoluta

O grande desafio consiste em perceber se a liberdade absoluta não será, afinal, quase tão insana como a ausência de liberdade. Onde fundamentar, então, essa liberdade, característica essencial do ser humano? 

Somos diariamente confrontados com dilemas que merecem reflexão profunda e consequências políticas, isto é, práticas. O tema da liberdade de expressão e da liberdade religiosa são dois exemplos paradigmáticos, bem como a sua eventual conflitualidade ou confusão com a noção de direitos humanos universais.

O liberalismo progressista defende uma visão extremamente ampla da abolição das proibições e de qualquer interferência sobre a liberdade individual. A esquerda, por seu lado, tende a adotar uma postura mais seletiva: liberdade absoluta para os que partilham dos seus ideais, condicionamento total para os que deles discordam. Mas a própria ideia de liberdade absoluta, desde que ‘não cause dano a outro’, merece ser testada na prática. Vejamos algumas hipóteses que, embora pareçam absurdas, revelam as contradições de uma conceção de liberdade desligada de qualquer fundamento moral ou ontológico.

Porque não posso casar com a minha avó, se ambos somos maiores de idade e consentimos?

Porque não posso recorrer ao Serviço Nacional de Saúde para amputar um braço, se quero ter apenas um e considero isso essencial para o meu equilíbrio psicológico, já que o corpo é meu?

Porque não posso vender-me como escravo, se é a minha vontade e o meu corpo me pertence?

Porque não posso casar com o meu cão, se o amo sinceramente e ele é parte essencial da minha vida emocional?

Porque não posso abrir uma empresa de duelos, onde dois adultos consentem em matar-se mutuamente como forma de catarse existencial?

Porque não posso decidir não educar os meus filhos e deixá-los crescer como animais selvagens, se considero isso mais ‘natural’?

Porque não posso consumir qualquer droga, em qualquer dose, em qualquer lugar, se é a minha escolha pessoal?

Porque não posso alterar o meu ADN, colocar chifres, garras ou cauda, se isso exprime a minha identidade interior?

Porque não posso obrigar o Estado a reconhecer que sou um elfo, um dragão ou um ser imortal e emitir documentos oficiais com essa identidade?

Porque não posso manter relações simultâneas com dez pessoas e exigir ao Estado um casamento coletivo com todas elas?

Porque não posso recusar pagar impostos, alegando que o meu ‘eu profundo’ não reconhece a autoridade do Estado?

Porque não posso retirar os olhos por vontade própria, se o meu equilíbrio espiritual exige viver ‘cegamente’?

Porque não posso adotar um cadáver como filho e exigir ao registo civil o reconhecimento dessa relação parental?

Porque não posso assassinar-me em público e exigir que o Estado organize a cerimónia como expressão da minha ‘liberdade de morrer’?

Porque não posso autoidentificar-me como maior de idade aos doze anos ou como idoso aos trinta, se a idade é uma construção social?

Porque não posso negar que a lei da gravidade se aplica a mim e pedir indemnização ao Estado por não respeitar a minha ‘realidade pessoal’?

Porque não posso abrir um templo onde venero o meu reflexo ao espelho e exigir isenção fiscal como religião reconhecida?

Responder a estas questões não pode reduzir-se ao campo da legalidade. A questão é mais profunda e exige uma reflexão sobre a própria natureza humana e sobre os limites constitutivos da liberdade. Há também dois planos bem distintos: uma coisa é viver sozinho numa ilha, outra é viver em sociedade.

O grande desafio consiste em perceber se a liberdade absoluta não será, afinal, quase tão insana como a ausência de liberdade. Onde fundamentar, então, essa liberdade, característica essencial do ser humano?