Elevador da Glória. Carris falhou inspeção recomendada ao cabo

Cabo com ‘alma’ em fibra foi aprovado em testes realizados em 2023. Empresa municipal esqueceu-se de os repetir um ano depois.

O Instituto de Soldadura e Qualidade (ISQ) deu parecer positivo ao primeiro cabo com alma de fibra, igual ao do acidente, instalado no elevador da Glória em dezembro de 2022. «Em fevereiro de 2023, cerca de dois meses após a instalação do novo cabo, o ISQ realizou uma inspeção ao cabo, não tendo sido detetadas não conformidades», confirmou ao Nascer do SOL o Conselho de Administração do ISQ, presidido por Pedro Matias.

Sucede que este organismo garante ter endossado à Carris, no seu relatório, «uma recomendação de nova inspeção, no prazo máximo de 12 meses». Essa inspeção nunca ocorreu, tendo os cabos dos elevadores da Glória e do Lavra continuado ao serviço até finais de agosto de 2024, sem registo de incidentes. Foram então substituídos por cabos iguais, provenientes da mesma encomenda. O segundo exemplar entrou ao serviço no dia 1 de outubro de 2024 e aguentou-se, sem qualquer outra inspeção, até ao dia da tragédia: 3 de setembro de 2025.

Confrontada pelo Nascer do SOL, a administração em exercício da Carris declinou explicações sobre a falha nos prazos de inspeção recomendados.

O ISQ foi chamado duas vezes pela Carris a realizar ‘ensaios magneto-indutivos’ aos  cabos do Elevador da Glória. Trata-se de exames não invasivos, semelhantes às ressonâncias magnéticas em seres humanos. Os sensores de campos magnéticos do ISQ são eficazes a detetar falhas como corrosão, bolhas de ar, fios partidos e outras anomalias no interior dos cabos, que escapam facilmente às inspeções visuais.

O problema é que esse exame nunca observou os pontos de amarração do cabo às cabines.  «A inspeção realizada prevê a deteção de falhas internas e externas ao longo do comprimento ativo do cabo de aço, não abrangendo os pontos de ancoragem ou terminações, uma vez que o aparelho de medição não consegue aceder e percorrer essas zonas», expõe o Conselho de Administração do ISQ.

O exame desses pontos críticos implicaria desmontar uma série de peças e parar os elevadores vários dias, com uma periodicidade mensal, de acordo com as normas europeias. «É uma intervenção que implica imobilização do veículo e não compatível com a operação de serviço público», explicava-nos, há dois meses, fonte oficial da Carris.

No caso do elevador da Glória, o meio de diagnóstico só ocorreu depois da morte de 16 pessoas. Uma radiografia, por raios gama, detetou ‘chochos’, ou bolhas de ar, na ‘pinha’ de selagem do cabo à carruagem que provocou a tragédia. Essas peças, críticas para a segurança do sistema, resultam de um processo artesanal de fundição, executado por funcionários da Carris há dezenas de anos.

Como denuncia o relatório preliminar do Gabinete de Prevenção e Investigação de Acidentes com Aeronaves e Acidentes Ferroviários (GPIAAF), os novos soldadores seguiam as instruções manuscritas, num caderno, por um camarada já reformado. A Carris nunca adotou os procedimentos previstos nas normas europeias.

CABO COM ‘ALMA’ DE AÇO CHUMBADO

O Nascer do Sol sabe que existiui uma  primeira inspeção do ISQ ao cabo do Elevador da Glória. Aconteceu em julho de 2022, ainda estava em operação o cabo tradicionalmente usado pela Carris há dezenas de anos, com núcleo, ou ‘alma’, de aço. Nessa ocasião, os sensores de campos magnéticos detetaram defeitos, em número e intensidade, perigosamente próximos dos limiares de segurança estabelecidos.

O ISQ recomendou, então, a substituição do cabo. Assim aconteceu em 4 de dezembro de 2022, aos 384 dias de serviço, muito antes dos 600 estipulados para a substituição.  O prazo de 600 dias, adotado como um mantra pela Carris, não só é muito inferior à validade indicada pelo fabricante, como contrasta com a prática corrente em funiculares de outros países da Europa. Na Suiça e na Áustria, países com grande tradição nestes meios de transporte, pela atração turística e desportiva das respetivas montanhas, os cabos chegam a ser substituídos ao fim de 12 anos.

Este facto é um forte indício de que a fileira técnica da Carris tinha plena consciência de que a segurança dos passageiros dependia exclusivamente do cabo, circunstância única no mundo e ostensivamente violadora das normas internacionais. «Foi declarado à investigação por diversos técnicos e trabalhadores da CCFL ligados aos ascensores que havia a perceção de que a segurança do sistema dependia inteiramente do cabo e que o sistema de freio não era eficaz», descreve o (GPIAAF).

O resultado das duas ‘ressonâncias magnéticas’ do ISQ demonstra que não é determinante para a segurança do funicular se a ‘alma’ do cabo é em aço ou em fibra. Como refere o relatório preliminar do GPIAAF, os cabos com núcleo em fibra são de «uso corrente e vulgar em funiculares».

O Nascer do SOL apurou que a Carris teve o suporte do Centro de Apoio Tecnológico à Indústria Metalomecânica (CATIM) para operar a substituição da tipologia de cabo. No relatório preliminar, o GPIAAF preservou a identidade desta associação privada de empresas, de utilidade pública e sem fins lucrativos, mas invocou-a como «entidade acreditada e especializada na matéria».

O CATIM recomendou sempre à Carris um cabo, com alma em fibra, que cumpre as especificações técnicas europeias, no que respeita aos testes de pré-comercialização, a fim de ser certificado para funiculares, teleféricos e outros sistemas de transporte de pessoas. Em 2011, confrontado com alegações de dificuldade da respetiva aquisição no mercado, avalizou um cabo com alma de fibra têxtil. Como condição, impôs a «observação especial do seu comportamento, atendendo à falta de experiência com a sua utilização naquele equipamento e não estar certificado para aquela utilização».

O cabo do acidente não foi recomendado por ninguém. Antes resultou de um erro de encomenda e de receção da mesma por parte dos serviços técnicos da Carris. Não estava certificado para o transporte de pessoas, por não ter sido submetido pelo fabricante aos testes prévios necessários.

Este facto não explica o acidente. O cabo estava projetado para suportar 67,5 toneladas de força. Nos termos do GPIAAF, «ultrapassava bastante o fator de segurança» requerido na norma EN12927, relativa aos requisitos dos cabos para funiculares, teleféricos e quaisquer outras instalações de transporte de pessoas.

O CATIM invocou «o princípio da confidencialidade» nas relações com as empresas para não comentar as suas recomendações à Carris.