Já quase tudo foi dito sobre a proibição da burca aprovada há duas semanas na Assembleia da República, com o voto contra de toda a esquerda. Só um ponto fundamental ficou por sublinhar.
A base da melhor teoria política e ética europeia é o conceito de reconhecimento, ou seja, que cada indivíduo reconhece os outros como iguais. O reconhecimento como base da ética e da política significa que eu e tu nos atribuímos mutuamente um estatuto moral e jurídico. É um facto antropológico estabelecido que pelo reconhecimento se estabelece a personalidade moral e jurídica. O fundamento das instituições morais e políticas humanas, privadas e públicas, é a atribuição recíproca de personalidade, deveres e direitos.
Isto é o que o rosto representa. É pelo rosto e no rosto que reconhecemos os outros e nos identificamos como pessoas. O grave na burca é a privação do rosto como regra cultural instituída. A burca é a ostentação pública, gritante, da recusa de reconhecimento do estatuto de pessoa, é a perda de estatuto moral e jurídico, equivalente à escravatura. O seu uso, imposto por normas religiosas – o que nem sequer é o caso nas burcas – ou culturais, é a recusa de reconhecer personalidade às mulheres fora de casa e da família. Figuras confinadas, sem rosto, a quem é negado o reconhecimento.
Mas há pior. A razão da ocultação do rosto das mulheres não é somente o exercício do poder patriarcal sobre metade da humanidade. O rosto da mulher deve ser ocultado por razões de uma sexualidade masculina mal resolvida, em estado mágico e infantil. Sem personalidade, a mulher fora de casa está reduzida ao seu estatuto de objeto sexual, tem de ser escondida para não ser profanada pelo desejo e o olhar dos outros homens. Na sua habitual genialidade, Pessoa formulou à perfeição o pensamento que a burca publicita: a única profissão honesta para uma mulher fora de casa é a de prostituta.
Que PS, Livre, PCP e BE tenham esquecido coisas tão simples e substituído a sua herança de liberdade, igualdade e fraternidade universais pelo caldo pós e neomarxista das burcas não surpreende. Principalmente os três últimos votarão pelas correntes nos tornozelos, se entenderem que isso os leva lá aonde querem chegar. As razões meramente táticas da votação e dos argumentos da esquerda são mais um contributo para a sua corrosão ideológica, política e, a prazo, eleitoral.