A Direita tecnológica e o fim do estado liberal: o neorreacionarismo como nova visão política do século XXI

Talvez o neorreacionarismo não seja ainda o futuro, mas é já um ensaio sobre os contornos possíveis do pós-liberalismo, por vezes desvinculado de uma matriz conservadora capaz de o orientar.

No campo do debate político, o século XXI assistiu ao surgimento de novas visões à margem do sistema ocidental dominante nas últimas décadas. Podemos, por ignorância ou por cálculo estratégico, rotulá-las com os velhos conceitos de “extremismo de direita”, “populismo” ou mesmo “fascismo”, mas elas possuem algo de substancialmente novo. Entre essas correntes incluem-se o pensamento pós-liberal, o novo conservadorismo do bem comum e uma nova direita muito distante das conceções de Alain de Benoist. Uma dessas formulações já ocupa um espaço significativo no debate ideológico, embora, como é habitual, ainda não tenha surgido em Portugal, e encontra-se em clara ascensão. Trata-se do chamado neorreacionarismo. Não, esta corrente não é o regresso de velhos senhores feudais, de neomaistreanos ou de nostálgicos das ditaduras do século XX. É algo novo, radical e inquietante.

Esta corrente ideológica assume uma crítica radical ao igualitarismo e à democracia de massas. Recupera ideias de hierarquia, de autoridade legítima, de soberania vertical e de elites naturais. Inspira-se frequentemente em modelos históricos pré-modernos, como monarquias, impérios ou ordens aristocráticas, vistos como formas superiores de organização política. No entanto, tende ao pessimismo civilizacional, ao elitismo niilista e à rejeição pura da vontade popular. É intelectualmente desafiante, mas politicamente limitado e dificilmente enraizável nas realidades contemporâneas. Esta corrente conhece afinidades importantes com os libertários tecnológicos e funde a ideia, aparentemente inconciliável de um certo conservadorismo tradicional com as novas possibilidades tecnológicas, assentes na autonomia do indivíduo e na libertação das tutelas de cariz estatal. Do setor das novas tecnologias, desde a utopia tecnológica da ideologia californiana até ao presente, assistimos ao emergir dessa visão conservadora também associada ao desenvolvimento tecnológico. O neorreacionarismo, ou NRx (Neoreaction), na sua vertente mais singular e inovadora, surge no início do século XXI. Esta é uma nova visão política e do mundo, assente nas possibilidades tecnológicas e numa leitura libertária da realidade, combinada com uma crítica total da democracia liberal, da modernidade igualitária, da democracia representativa e do progressismo cultural. Este movimento e os seus principais nomes não são ainda muito representativos, destacando-se principalmente em nichos do ecossistema tecnológico dos Estados Unidos, mas começa a exercer uma influência crescente sobre a nova direita pós-liberal, tanto mais significativa quanto mais a tecnologia se torna o eixo estruturante da sociedade contemporânea. Uma das suas premissas fundamentais é a convicção de que as instituições democráticas se tornaram incapazes de sustentar uma ordem estável, eficiente e coerente. Mais do que um partido político ou um programa governativo, o neorreacionarismo representa um conjunto de ideias, diagnósticos e experiências que procuram redesenhar radicalmente as formas de soberania no Ocidente, propondo modelos alternativos à conceção clássica de Estado-nação e antecipando um futuro de substituição do paradigma dominante da democracia liberal.

Entre as figuras centrais do movimento encontra-se Curtis Yarvin, mais conhecido pelo pseudónimo Mencius Moldbug. Nele encontramos alguns dos conceitos mais estruturantes do pensamento neorreacionário, entre os quais o de patchwork: a projeção de um futuro onde o mundo se fragmentaria em múltiplas cidades-Estado soberanas, organizadas como empresas privadas e governadas por modelos semelhantes aos de um CEO. Para Yarvin, a democracia liberal degenerou num aparelho pesado e ineficaz, paralisado por conflitos internos e capturado por agendas ideológicas, incapaz de assegurar ordem e progresso. Como alternativa, propõe a criação de governos centralizados, hierárquicos e eficientes, dotados de autonomia plena e competindo entre si num verdadeiro mercado de soberanias, onde a tecnologia desempenha um papel decisivo. Outro nome fundamental é o do filósofo britânico Nick Land, criador do conceito de Dark Enlightenment (Iluminação Sombria), que deu origem a um ramo específico do neorreacionarismo. Land partilha da crítica ao universalismo liberal e ao igualitarismo moderno, mas vai mais longe, defendendo um aceleracionismo radical que propõe libertar a tecnologia, a inteligência artificial e a própria competição civilizacional das travas da política democrática. As suas ideias dialogam com tradições intelectuais anteriores, como a crítica tradicionalista de Julius Evola, a apologia da ordem hierárquica em Thomas Carlyle e o realismo político de Hobbes, reinterpretando-as num contexto profundamente digital.

Foi no ecossistema tecnológico de Silicon Valley que o neorreacionarismo encontrou o terreno mais fértil para florescer. A crítica às estruturas estatais, aliada a uma aposta estratégica na tecnologia enquanto vetor de soberania, seduziu parte da elite empresarial da região. Entre os nomes mais relevantes encontra-se Peter Thiel, cofundador do PayPal e investidor de primeira linha no Facebook, que se destacou não só pela defesa destas ideias, mas também pela sua difusão, inclusive entre figuras do Partido Republicano, como JD Vance. Thiel tornou célebre a afirmação de que “a liberdade e a democracia são incompatíveis” e investiu no Seasteading Institute, um projeto que procura materializar algumas das conceções filosófico-políticas do neorreacionarismo. O objetivo é criar cidades-Estado flutuantes fora do alcance jurídico dos Estados-nação, onde possam ser testados novos modelos de governação. Thiel tem ainda financiado empresas e iniciativas destinadas a contornar os mecanismos de controlo dos governos tradicionais. Outro exemplo é Balaji Srinivasan, antigo diretor de tecnologia da Coinbase, que defende a criação de network states, comunidades digitais soberanas, unidas por contratos e tecnologias de blockchain, capazes de adquirir território físico e funcionar como novos Estados. O próprio Yarvin trabalhou no projeto Urbit, uma infraestrutura descentralizada concebida para criar uma internet paralela, imune à intervenção das autoridades estatais. Estes exemplos revelam como o neorreacionarismo utiliza a tecnologia como verdadeiro laboratório político, criando infraestruturas paralelas, digitais, financeiras e administrativas que, a prazo, poderão competir com os Estados contemporâneos.

Apesar de não se traduzir em partidos ou movimentos de massas, o neorreacionarismo tem influenciado significativamente a nova direita pós-liberal. Nos Estados Unidos, setores da alt-right inicial incorporaram algumas das suas teses, sobretudo a crítica ao multiculturalismo, ao igualitarismo e à burocracia estatal, sem reduzir a NRx à alt-right, com a qual mantém tensões de fundo. No entanto, a relação entre os dois movimentos sempre foi tensa: enquanto a alt-right mobilizava as massas com uma retórica populista, o NRx manteve um perfil elitista e tecnocrático, mais preocupado com a construção de estruturas eficientes do que com a conquista eleitoral. Ainda assim, parte do chamado trumpismo intelectual absorveu ideias próximas do neorreacionarismo, nomeadamente mediante think tanks como o Claremont Institute e publicações como The American Mind, que defendem a necessidade de reconstruir o Estado e restaurar uma elite dirigente leal ao interesse nacional. O Gray Mirror, Substack atual de Yarvin, tornou-se um espaço central para esta difusão metapolítica, funcionando simultaneamente como crítica sistemática da democracia liberal e proposta de modelos alternativos de soberania.

Na Europa, a influência do neorreacionarismo manifesta-se de forma mais indireta, sobretudo no plano cultural e metapolítico. Movimentos como a Génération Identitaire, ativos em França, Áustria e Alemanha, partilham com o NRx a crítica ao universalismo liberal e a defesa de comunidades culturalmente homogéneas, ainda que rejeitem o seu elitismo tecnocrático. Intelectuais como Dominique Venner anteciparam, já nas décadas anteriores, algumas destas teses, defendendo a preservação da identidade europeia e a recusa da dissolução cultural promovida pelo progressismo global. Figuras políticas como Viktor Orbán e Giorgia Meloni, que não podem ser identificadas com este movimento, são ainda assim admiradas pelos seus adeptos, embora consideradas exemplos imperfeitos de resistência ao globalismo liberal e à hegemonia progressista da União Europeia. Enquanto nos Estados Unidos esta corrente se afirma sobretudo como projeto tecnocrático e experimental, na Europa as suas ideias ecoam principalmente na defesa da soberania cultural e na rejeição do cosmopolitismo uniformizador.

As propostas deste movimento articulam-se em torno de diferentes estratégias de fragmentação soberana que desafiam diretamente a centralização estatal moderna. O patchwork imaginado por Yarvin projeta um mundo composto por cidades-Estado corporativas, competindo pela eficiência e atraindo cidadãos como clientes. Os network states de Srinivasan apostam na construção de soberanias digitais, organizadas em torno de comunidades com valores partilhados, dotadas de moeda própria, contratos inteligentes e até território físico. O seasteading, por seu lado, procura criar plataformas flutuantes onde novos sistemas políticos possam ser testados fora do alcance das jurisdições existentes. Embora distintas, estas ideias convergem numa mesma ambição: criar espaços autónomos, físicos ou digitais, capazes de escapar à lógica uniformizadora do liberalismo global e ao controlo centralizado dos Estados-nação.

O neorreacionarismo pode ser interpretado simultaneamente como sintoma e como catalisador. É sintoma porque nasce da perceção crescente de que o modelo liberal-progressista perdeu a capacidade de gerar coesão social, prosperidade sustentável e sentido de pertença. E é catalisador porque propõe alternativas radicais que, embora ainda incipientes, já redefinem o imaginário político do Ocidente. Ao propor-se a visão de um futuro pós-democrático, governado por elites tecnocráticas e múltiplas soberanias concorrentes, este movimento entra em tensão com uma das dimensões conservadoras mais interessantes, que continua a valorizar instituições nacionais, laços comunitários e soberania política clássica. O confronto entre um pós-liberalismo conservador, enraizado na tradição e no bem comum, e um neorreacionarismo tecnocrático, orientado para a fragmentação e a competição, poderá definir o futuro da direita ocidental.

Hoje, o movimento é mais influente do que visível. Não se apresenta como uma estrutura politicamente organizada, mas infiltra-se nas ideias, nas redes digitais, nos experimentos tecnológicos e nos debates metapolíticos. Simultaneamente, avança com uma hipótese disruptiva: a de um Ocidente pós-Estado-nação, descentralizado e plural, onde múltiplas formas de soberania coexistem e concorrem. A questão decisiva é saber se estas propostas representam uma utopia elitista, confinada às elites tecnológicas, ou se marcam o início de uma transformação profunda da ordem política ocidental. Talvez o neorreacionarismo não seja ainda o futuro, mas é já um ensaio sobre os contornos possíveis do pós-liberalismo, por vezes desvinculado de uma matriz conservadora capaz de o orientar.

Em Portugal e na generalidade da Europa continental, o neorreacionarismo permanece um fenómeno distante, mas as suas intuições começam a encontrar terreno fértil. A crescente desconfiança em relação às instituições democráticas, o descrédito das elites políticas e a dependência tecnológica face a estruturas privadas globais reproduzem, ainda que involuntariamente, algumas das condições que alimentam esta ideologia. A fragmentação social e a erosão da autoridade dos Estados nacionais criam espaço para novas formas de soberania digital e comunitária. Embora a tradição política europeia mantenha um apego mais profundo ao Estado-nação e à legitimidade histórica das instituições, a pressão da economia digital e a centralização burocrática da União Europeia poderão tornar o continente mais vulnerável às soluções tecnocráticas e descentralizadas que o neorreacionarismo antecipa. O desafio para a direita europeia, e para Portugal em particular, será compreender este fenómeno sem o imitar, aprendendo com a sua crítica ao esgotamento liberal, mas recusando a sua tentação de substituir a política pela engenharia social das elites tecnológicas.