O caso da BBC não é só embaraçoso. É revelador. Mostra como até uma marca construída durante um século sobre a ideia de rigor pode resvalar para aquilo que muitos jornalistas juram combater: a manipulação do real para caber na narrativa preferida. A edição adulterada do discurso de Trump não é uma falha técnica – é um desvio ético. E o facto de ter acontecido na BBC torna-o mais grave, não menos.
O problema – e este é o ponto inquietante – é que já não estamos perante lapsos isolados. Há, em demasiados média, uma espécie de ‘agenda editorial’ que se sobrepõe ao compromisso básico com os factos. Não é militância aberta; é pior. É um enviesamento difuso, mascarado de boa intenção, que contaminará sempre o julgamento. Quando o jornalista se convence de que ‘tem razão’, o escrúpulo factual começa a desaparecer na edição, na escolha de palavras, na opção pelo excerto conveniente em detrimento do contexto completo.
E quando isso acontece na BBC, percebemos que ninguém está acima desse risco.
Agora, deixo claro: dirijo uma operação de jornalismo, e sei bem que nenhuma redação está imune a erros. A diferença entre falhar e comprometer o princípio é simples: mecanismos de verificação que funcionem e uma cultura de dúvida permanente. Não há outra defesa. Nem há nenhum heroísmo nisso. Há método. Há disciplina. Há o desconforto produtivo de discutir, rever, cruzar, validar, travar e, quando necessário, dizer ‘isto não está sólido’. É o nosso dever.
O que o caso da BBC expõe é a consequência de baixar esse padrão. Basta uma equipa, um editor, um momento – e o capital de confiança acumulado durante décadas sofre um rombo profundo. E o público, já desconfiado, recebe mais uma prova de que o jornalismo contemporâneo muitas vezes parece preferir interpretar o mundo em vez de o relatar.
Por isso, sim: indignação justa. Mas sobretudo alerta. Porque enquanto o setor continuar a flertar com a ideia de que a ‘mensagem’ é mais importante do que o facto, continuaremos a produzir não informação, mas versões.
Nos últimos vinte anos, pelo menos, a BBC viveu e ultrapassou muitas crises, várias relacionadas com o jornalismo que produz. Teve sempre a capacidade de se questionar e de resolver os problemas. A matriz da Corporação diz-me que desta vez não será diferente, mesmo em tempos mais incertos. Mark Thompson, o atual CEO da CNN, que foi Diretor-geral da BBC entre 2004 e 2012 comparou-a uma vez a um Martini – «Pode-se tomar em qualquer dia, a qualquer hora e em qualquer lugar». Acredito que ainda é verdade.