Ser de Esquerda, hoje

Ser de esquerda no século XXI talvez signifique recuperar a lucidez de reconhecer que o ideal só ganha força quando se enraíza no real. O limite não é ceder, é agir com eficácia.

A esquerda confronta-se com o desafio de se reinventar num mundo que mudou mais depressa do que a sua linguagem política. Ser de esquerda, hoje, é viver a tensão permanente entre o ideal e o real.

A tradição emancipadora que marcou o século XX confronta-se com um mundo profundamente transformado: digital, globalizado e pós-industrial, onde as antigas categorias de classe, produção e redistribuição já não bastam para descrever as novas formas de desigualdade.

O que outrora se entendia como conflito entre o capital e o trabalho deslocou-se para campos mais difusos como o acesso à informação, à habitação, à mobilidade social e ao tempo. A esquerda, se quiser permanecer relevante, precisa de renovar a sua linguagem e o seu pensamento, preservando o impulso ético que a define, mas adaptando-o à complexidade contemporânea.

Nos Estados Unidos, essa tensão manifesta-se com uma nitidez quase dramática. A eleição de Zohran Mamdani para governador de Nova Iorque simboliza o retorno de uma imaginação socialista que parecia ter desaparecido do cenário americano. O seu programa, que propõe o congelamento das rendas, a proibição de despejos, a expansão da habitação pública e a gratuitidade dos transportes, traduz um desejo de proteção num contexto urbano marcado pela desigualdade e pela insegurança existencial. Mas o moralismo económico dessas propostas ignora a delicada ecologia da cidade moderna, feita de investimento, de risco e de inovação. Ao submeter a economia a uma ética de intenções, corre-se o perigo de transformar a política social num exercício de contenção e a justiça num sinónimo de estagnação.

Na Europa, este movimento segue outra direção. A vitória do D66, partido liberal-progressista de centro-esquerda, sobre a extrema-direita de Geert Wilders revela uma tentativa de conciliar a racionalidade com o idealismo. Esta via reformista combina a abertura económica com a sensibilidade social, confiança no conhecimento científico e um forte compromisso europeu. Não procura abolir o mercado, mas submetê-lo a critérios de transparência e equidade. Não se define pela negação do sistema, mas pela capacidade de o corrigir. A política, aqui, é entendida como a arte de mediação e o exercício de responsabilidade, não como um palco de purificação moral. Essa visão aproxima-se do espírito liberal-social que, em diferentes momentos, inspirou as democracias mais maduras do pós-guerra, através de uma ética do possível, consciente de que a mudança duradoura é sempre gradual.

Entre Nova Iorque e Haia desenha-se a encruzilhada do nosso tempo. De um lado, uma esquerda que se alimenta da pureza ideológica e da retórica do antagonismo; do outro, o reconhecimento do poder como um instrumento de transformação prudente e progressiva. A primeira confunde coerência com inflexibilidade; a segunda compreende que a política é uma arte de limites, feita de negociações e imperfeições. O destino do campo progressista dependerá da escolha entre estas duas abordagens: a da fé redentora e a da razão reformista.

Ser de esquerda no século XXI talvez signifique recuperar a lucidez de reconhecer que o ideal só ganha força quando se enraíza no real. O limite não é ceder, é agir com eficácia. A moderação não é fraqueza. É a força serena dos que têm coragem para servir, e não apenas para vencer. Só uma esquerda que compreenda o seu tempo poderá, ainda, aspirar a transformá-lo.