Pouco antes da morte do Comando do 25 de Novembro, em 2013, era publicada uma biografia de autor que alterou a minha perspectiva sobre um ponto de viragem tão importante da nossa História recente. Jaime Neves sempre me aparecera como uma figura tão curiosa como intrigante, mas o meu conhecimento era superficial. Apesar de a História ser feita por homens, importara-me mais com os factos e as suas possibilidades. A tentação científica é propícia à ucronia e àquela dúvida inevitável: o que aconteceria se?…
Desta vez, também o autor da biografia me interessava tanto como o retratado. O seu percurso era tão fascinante como enigmático. Uma vida em que se cruzavam a Guerra de África, onde combateu como Comando, e a Literatura, disciplina em que se doutorou e ensinou, além da sua extensa obra académica e dos vários romances publicados.
Quis conhecê-lo e entrevistá-lo para o jornal que eu então dirigia. O Rui de Azevedo Teixeira acedeu e, naturalmente, tornámo-nos amigos.
Nessa conversa, sem rodeios, reconheceu prontamente a verdadeira aventura que foi a vida de Jaime Neves, afirmando que ele «viveu sempre em alta voltagem. O seu forno de adrenalina esteve sempre aceso. Se não era a guerra – em Moçambique, foi “o grande distribuidor da morte violenta” – eram as mulheres, o jogo, os copos ou as “recuperações de património” que Jorge de Brito perdera na voragem do PREC.»
De onde vinha esta história inacreditável? O autor baseou a obra em vários testemunhos, cruzando sempre as várias versões, e em entrevistas com o biografado. O resultado foi um trabalho de mérito, em que se conjugam maravilhosamente o estilo áspero e directo dos militares, com a erudição de um académico. Esta fusão, que parece paradoxal, muitíssimo bem conseguida, é que torna este livro diferente – original, no sentido profundo do termo. Primeiro, porque o Rui de Azevedo Teixeira passou pelas mesmas origens que Neves, ao servir a Pátria em combate, numa força especial de excelência. Depois, porque a sua inteligência e cultura profunda levam-nos mais além e fazem o leitor reflectir. Falar no mesmo livro no Tamila e na noite de Lisboa e citar os clássicos não é para todos, especialmente quando se consegue dar uma sólida coerência a toda a obra. Nesta aventura que entusiasma rapidamente quem a devora, pelo protagonista e pelo estilo, há também o prazer de saborear um texto muito bem escrito, que se lê agradavelmente de um fôlego.
Parece ficção? Como nos diz o Rui de Azevedo Teixeira, «se tivesse substituído os nomes reais por fictícios, Jaime Neves por Manuel Ferreira da Selva, por exemplo, teria sido um romance de personagem». E que romance!
Jaime Neves tinha a fibra dos heróis. Não deixava ninguém indiferente, algo que se nota na força especial que o seu nome gerava. Ainda em vida, atingiu uma dimensão sobre-humana. Gerou paixões e amores, mas também ódios. Quando se ouvem as histórias dele – muitas já mitificadas – percebemos bem que a lenda cedo se começou a criar. O Rui de Azevedo Teixeira foi o bardo à altura de cantar os seus feitos e escreveu um justo relato dessa lenda que continua viva. A história próxima e sentida de um herói português.
No ano passado, o livro teve uma nova edição com a chancela da Guerra & Paz com o título Jaime Neves – Homem de Guerra e Boémio. Meio século depois do 25 de Novembro, é uma leitura fundamental para o compreendermos.