Ler a reforma laboral e reler Marcuse

A análise desta reforma não pode cingir-se à discussão pontual da constitucionalidade de uma e de outra medida nela previstas.

Relendo o texto que foi aqui publicado na semana passada sobre a reforma laboral, recordámos, sem citar, uma obra que o inspirou.

Referimo-nos a O Homem Unidimensional de Herbert Marcuse.

O atual projeto de reforma laboral tende, com efeito, a concretizar o tipo de trabalhador que Marcuse, há cerca de sessenta anos, anteviu como sendo aquele que aí viria: um trabalhador mais ‘flexível’ e ‘adaptável’, levado a conformar-se, com menos segurança laboral, a troco de promessas do reconhecimento do aumento de produtividade e da avaliação do mérito.

Tal regime permitir-lhe-ia aceder a necessidades de consumo mais ou menos artificiais, mas – sabemos agora – viria a ser insuficiente para prover a carências básicas, como é, por exemplo, a da habitação.

O caso dos atuais trabalhadores jovens é disso paradigmático: não ganhando o suficiente para se autonomizarem da economia familiar, cuja casa habitam até tarde, acabam, no entanto, por aceder a alguns bens e atividades lúdicas, que os satisfazem fugaz e ilusoriamente, e que pagam com o pocket money que auferem como salário líquido.

A retórica de modernização da economia, associada a tal reforma, conduz, igualmente, como aquele filósofo previra, a um reposicionamento de poder na relação do trabalho, favorecendo, sem dúvida alguma, as empresas e os empresários.

Como, a certo passo, diz Marcuse «… A produção e a distribuição de massas reclamam a totalidade do individuo».

Aí reside, portanto, o ponto da redução do trabalhador à condição de «homem unidimensional».

Mesmo que, seguramente, alheia ao pensamento crítico de Marcuse, a reforma laboral acalenta os objetivos que ele antecipou como profundamente negativos para o homem de hoje e de sempre.

Ela transforma o trabalhador num mero recurso produtivo: um ser/coisa totalmente disponível, flexível e sempre ajustável às exigências da empresa e, finalmente, descartável por ela a qualquer momento.

Esta reforma visa, no fundamental:

 – Ampliar, sem custos adicionais, a produtividade do trabalhador por hora de trabalho;

– Impor ao trabalhador a obrigação de fornecer mais horas de trabalho do que as contratadas, como decorre da sua sujeição a um banco de horas individual;

– Manter incerto o seu posto de trabalho;

 – Reduzir o ‘custo político’ desta e de qualquer outra reforma laboral, condicionando o âmbito do direito à greve, de modo a reduzir-lhe a força e utilidade contestatária.

A ênfase dada por esta reforma aos conceitos de ‘modernização’, ‘meritocracia’, ‘produtividade’, ‘competitividade’ revela bem a opção do legislador.

Medidas como a flexibilização de horários, maior facilidade dos despedimentos ou expansão da subcontratação – que a reforma laboral facilita – servem, precisa e exclusivamente, tal propósito.

Ou seja, destinam-se a reforçar o poder dos empresários, não apenas durante as horas de trabalho contratadas, mas, igualmente, sobre o que resta da vida particular do trabalhador: o tempo sobrante, próprio, intocável e alheio aos ditames e poder da empresa.

Acontece, todavia, que tal opção política contraria, no essencial, o regime constitucional específico dos direitos fundamentais dos trabalhadores (artigos 53.º a 59.º, 67.º, n.º 2, alínea h) e 68.º n.º 3 e 4 º da CRP).

Uma análise séria desta reforma não pode, pois, cingir-se à discussão pontual da constitucionalidade de uma e de outra medida nela previstas.

Esta reforma exige uma leitura integral e integrada, confrontando o seu sentido filosófico, político e económico geral com o que decorre do projeto constitucional de sociedade: razão pela qual ela terá de ser, neste caso, simultaneamente, parcelar e global, política e jurídica.