Os órfãos do Marxismo

Não foi apenas Jesus que morreu no Ocidente; Marx também morreu. Como observa Onésimo Teotónio Almeida, depois do cristianismo, o marxismo foi a doutrina que mais moldou o Ocidente, e a obsessão contemporânea com a igualdade difusa é, em larga medida, sua herdeira secularizada.

O marxismo foi uma das mais poderosas utopias políticas da modernidade. Não sobreviveu às tentativas de concretização, sobretudo como sistema político e económico viável, pois poucos, hoje, defenderiam a abolição da propriedade privada dos meios de produção ou a planificação central. Sobreviveu, porém, como estrutura mental, gramática moral e maneira quase instintiva de ver o mundo. A sua influência já não se encontra nos partidos comunistas nem nos ministérios da economia, mas nas faculdades de humanidades, nas redações dos jornais, nas direções de recursos humanos das grandes empresas, nos manuais escolares, nas séries televisivas e nos discursos das universidades norte-americanas. Espalhou-se, sobretudo, na linguagem com que pensamos o justo e o injusto.

Raymond Aron identificou, antes da queda do Muro de Berlim, as grandes crises do marxismo no século XX. Duas delas são decisivas para compreender o presente. A primeira foi a revolução bolchevique e a criação da União Soviética, onde um partido autoproclamado marxista tomou o poder pela força e instituiu um regime totalitário. A segunda foi o divórcio entre o modelo soviético e a social-democracia escandinava e britânica, integrada na democracia liberal e na economia de mercado. Desta terceira via nasceu a esquerda que ainda domina culturalmente o Ocidente. Os intelectuais que rejeitaram tanto o modelo de Lenine, demasiado tirânico, como o de Olof Palme ou Clement Attlee, considerado demasiado domesticado, deram origem, nos anos 60, à Nova Esquerda e, depois, aos estudos culturais, de género, pós-coloniais, queer e críticos da branquitude. Unia-os um sentimento de orfandade em relação a Marx.

Não foi apenas Jesus que morreu no Ocidente; Marx também morreu. Como observa Onésimo Teotónio Almeida, depois do cristianismo, o marxismo foi a doutrina que mais moldou o Ocidente, e a obsessão contemporânea com a igualdade difusa é, em larga medida, sua herdeira secularizada. A revelação do que foram os regimes soviéticos, maoístas e seus satélites afastou grande parte da intelligentsia europeia e destruiu a confiança numa filosofia que prometera redenção histórica, mas produzira tirania e miséria em escala inédita. Essa constatação corroeu a autoridade simbólica de Marx e deixou uma geração de intelectuais sem fundamento teórico e sem destino histórico. Onésimo nota que a compulsão igualitária contemporânea resulta da fusão entre ética cristã secularizada, impulso iluminista e Revolução Francesa, tendo encontrado no marxismo o seu último grande motor.

Desse choque entre utopia proclamada e realidade histórica emergiu um marxismo sem Marx: a tentativa de preservar o impulso moral do marxismo, traduzido na denúncia da injustiça estrutural, rejeitando o programa económico, o materialismo histórico, a luta de classes como motor da história e a centralidade do proletariado. Foi uma rutura traumática. A esquerda quis guardar a chama moral, mas já não podia regressar ao templo original sem confrontar o desastre que dele saíra.

A isto juntou-se o deslocamento cultural pós-1968. O proletariado europeu, enriquecido e integrado, deixara de ser o sujeito privilegiado da revolução. Marcuse chegou a falar de integração da classe operária. Os novos protagonistas passaram a ser estudantes, minorias raciais, mulheres, homossexuais e populações colonizadas. Marx fundiu-se com Freud, convertendo repressão sexual em repressão política, e com um Nietzsche simplificado, onde a vontade de potência se tornou empowerment identitário. Nos anos 80 e 90, a teoria crítica francesa emigrou para departamentos americanos, misturou-se com o movimento dos direitos civis, com o feminismo radical e com o pragmatismo local. Regressou à Europa sem o nome de Marx, mas com a sua estrutura mental intacta. A luta de classes converteu-se em luta cultural; base e superestrutura tornaram-se discurso e poder; alienação tornou-se interseccionalidade; falsa consciência tornou-se privilégio. Assim nasceu o que, de forma imprecisa, se chama marxismo cultural ou, mais exatamente, marxismo sem Marx. Muitas destas lutas tiveram origens legítimas, mas a sua gramática deriva diretamente desta mutação pós-marxista.

Entre 1953 e 1956, a desestalinização, o relatório Khrushchev e a revolta húngara abriram uma fratura profunda no marxismo oficial. Nos anos 60 surgiu a Nova Esquerda. Em 1960, C. Wright Mills publicou Letter to the New Left, marco do novo vocabulário político, e Marcuse declarou a integração da classe operária. No final dos anos 70, Régis Debray diagnosticou a rutura definitiva entre estudantes e trabalhadores e o carácter modernizador de Maio de 68. Décadas depois, esses estudantes tornaram-se quadros culturais das empresas, dos media e da indústria cultural. A partir dos anos 90, esta nova gramática conquistou as instituições que moldam a consciência coletiva: educação, cultura, comunicação social, organismos internacionais e departamentos de diversidade corporativos.

O resultado é uma esquerda órfã. Herdeira de Marx no tom moral, mas incompatível com o seu edifício teórico; órfã do proletariado; órfã da história como promessa universal; órfã até de si própria, porque o seu vocabulário já não assenta num sistema coerente, mas numa colagem de sensibilidades e agendas fragmentadas.

A economia ficou entregue à direita e ao centro-direita. A cultura, a linguagem, a moralidade quotidiana e os limites do que é permitido dizer, pensar e sentir ficaram sob a influência da esquerda pós-marxista. Todd Gitlin notou, em 1993, que enquanto a esquerda marchava sobre os departamentos de inglês, a direita conquistava a Casa Branca. O padrão repetiu-se na Europa com atraso. O resultado está à vista: capitalismo hiperliberal, mas culturalmente moldado pela esquerda.

No século XXI, a Nova Esquerda afirma-se não como a utopia emancipatória dos anos 60, mas como uma distopia moral, cultural e tecnológica. O que nascera como contestação ao autoritarismo tornou-se combustível do novo moralismo. A autonomia absoluta do indivíduo gerou atomização; a libertação tornou-se vigilância moral permanente; a crítica ao consumo desembocou na fusão entre progressismo cultural e capitalismo digital. A promessa de autenticidade deu lugar a um puritanismo identitário que fragmenta a sociedade, infantiliza a vida cívica e sujeita linguagem, humor e dissenso a uma supervisão emocional constante. Esta nova gramática fornece às universidades, à tecnologia, aos media e às corporações o léxico moral com que disciplinam comportamentos e moldam consciências. A utopia de libertação converteu-se numa distopia suave: mais frágil, mais vigiada e mais manipulável, onde a erosão da família, da comunidade e da continuidade cultural produz cidadãos dependentes de instituições que já não servem a liberdade, mas apenas o seu simulacro.

A pressão cultural estendeu-se às ciências exatas. Heather Mac Donald documentou como departamentos de biologia foram criticados por não refletirem a demografia regional. Em Berkeley, o curso introdutório de química orgânica passou a evitar terminologia considerada colonial e adotou mecanismos de responsabilização coletiva que tornam difícil a dúvida individual.

Camille Paglia considera irónico que liberais que defendem a ciência contra negacionistas do clima tenham expulsado a biologia dos estudos de género há meio século. A atual vaga transgénero ignora fatores biológicos e psicológicos complexos. Bloquear a puberdade de crianças constitui, na sua opinião, uma experiência de consequências imprevisíveis.

Castoriadis diagnosticava, nos anos 90, o vazio deixado pela dissolução dos papéis tradicionais. Hoje ninguém sabe o que é ser homem ou mulher, pai ou mãe. A insegurança ontológica que ele descrevia tornou-se programa político.

A biologia evolutiva acrescenta outra dificuldade ao novo dogma. Matt Ridley resume que a assimetria reprodutiva entre os sexos gerou diferenças psicológicas e comportamentais reais. Negá-las não elimina a sua existência; apenas oculta os custos de ignorá-las.

Nietzsche escreveu que o seu tempo se orgulhava de instintos invertidos, pedindo comodidade, publicidade ruidosa e reverência pela mentira igualitária. Esse mesmo Nietzsche seria transformado, nas universidades americanas dos anos 80 e 90, no patrono do relativismo pós-moderno.

John Gray sintetizou esta genealogia. O marxismo foi a versão mais radical da fé iluminista no progresso, ele próprio herança secularizada da esperança cristã de salvação. Quando o progresso material se revelou compatível com desigualdades persistentes, os órfãos de Marx transferiram a redenção do plano económico para o simbólico e moral. A revolução deixou de consistir na tomada do Palácio de Inverno e passou a consistir na alteração de pronomes, na reescrita de manuais e na introdução de quotas.

O capitalismo democrático venceu a guerra económica, produzindo riqueza sem precedentes. Mas não ocupou o vazio ético e existencial deixado pela morte de Deus e pelo colapso do socialismo. Esse vazio foi preenchido pelos órfãos de Marx.

A esquerda venceu a guerra que realmente importava: a guerra pela linguagem, pelos valores e pela definição do que é virtuoso ou odioso. O paradoxo final é este: quanto mais absoluto se tornou o seu domínio cultural, mais incapaz se revelou de enfrentar o capitalismo predatório, que entretanto se tornou mais concentrado do que nunca. A energia gasta em guerras simbólicas reduziu o impacto eleitoral da esquerda. Conquistou a cultura; perdeu a história. Nos últimos anos, porém, essa hegemonia cultural começou a ser seriamente contestada de Trump a Milei, de Meloni a vários governos europeus, o backlash é visível nas urnas, nas big tech e até em algumas universidades americanas.