A comida dos pobres 

O Natal está a aproximar-se, aos poucos. As ruas já estão enfeitadas e muitas famílias até antecipam compras. Outras pouco têm e as mesas da Consoada não serão abundantes. Clementina sempre foi pobre, tem dois filhos deficientes e recebe apoio do Banco Alimentar Contra a Fome. Isabel Jonet garante que “há situações ainda piores”

Um saco com pão, duas couves, dois pacotes de batatas fritas, manteiga, três bolas de Berlim e fruta. Foi este o cabaz que Clementina Camacho recebeu na quinta-feira, dia 20 de novembro. Não lhe dá, sequer, para fazer uma refeição quente. «Muitas vezes é assim: só fruta e pão», revela Clementina Camacho, 56 anos, uma das 385 mil pessoas que recebe apoio do Banco Alimentar Contra a Fome, em todo o país. «Praticamente o que costumam dar-me é fruta, pão, leite, o que é bom para os meus filhos, e iogurtes. Mas na semana passada, por exemplo, só me deram quatro iogurtes». 

É mesmo assim. Uma vez por mês chegam os ‘secos’: farinha, arroz, massa, feijão, grão, óleo e azeite, se houver, conta Dilar Duarte, diretora da Associação de Moradores do Casal Ventoso – hoje transformada em infantário – e uma das cerca de 2500 instituições que distribui comida pelos pobres (ou através de outros meios, como as cantinas sociais, os lares ou os infantários) proveniente do Banco Alimentar Contra a Fome, onde Clementina é utente.

Para Clementina, a quinta-feira em que são entregues os ‘secos’ é dia grande. «Às vezes dão latas de atum, de salsichas, feijão, arroz, massa. Muito de longe a longe lá dão azeite ou óleo. E, de vez em quando, também vem um franguinho congelado, mas é tão pequenino que mal chega para nós quatro», lamenta.

«Todos os dias são distribuídas 110 toneladas de alimentos em todo o país», avança Isabel Jonet, presidente do Banco Alimentar de Lisboa e da Federação Portuguesas dos Bancos Alimentares, que existem em todo o país.

Cabe às instituições de solidariedade social fazerem a triagem das pessoas a apoiar. Em Portugal, quase dois milhões vivem no limiar da pobreza, com 632 euros por mês. Há quem viva com menos. «É um quinto da população portuguesa. E ainda temos, no nosso país, pessoas que vivem com pensões de reforma de 180 euros por mês», avança Isabel Jonet. «É impossível ficarmos indiferentes, porque não se sobrevive com pensões tão baixas».

O Banco Alimentar, depois da triagem das instituições, tem uma base de dados, confidencial, que cruza dados com o nome das pessoas e a forma como estão a ser apoiadas: se é com cabazes, se é refeição confecionada e distribuída ao domicílio, se é um lar, se é uma creche, um centro de dia, ou outros. 

Há ainda especificidades, atualmente, que antes não se colocavam. Por exemplo, «há instituições que dão apoio a muçulmanos e, nesse caso, como não comem porco não podem receber salsichas ou fiambre», explica Isabel Jonet. «Agora, até há algumas instituições que perguntam se temos alguma comida oriental e também há instituições que têm restrições alimentares, devido à saúde dos utentes».

Idosos vivem pobreza envergonhada

Há quem peça ajuda mas também há muita pobreza envergonhada. «Normalmente, são mulheres, que ficaram viúvas, com pensões muito baixas e já não têm forma de manter o mesmo estilo de vida ou, até, um estilo de vida digno», comenta Jonet. A presidente do Banco Alimentar avança, ainda, que «os mais velhos têm mais vergonha de pedir do que os mais novos. Os mais novos não se acanham tanto até porque acham que têm direito».

À medida que os tempos e os costumes vão mudando o trabalho das instituições também se altera. «Antigamente havia as mercearias de portugueses, que eram muito atentos aos fregueses. Sabiam se eles iam à mercearia, o que compravam, se não iam», começa por explicar Jonet. «Atualmente, essas mercearias deram lugar a lojas de conveniência, que não são de pessoas portuguesas, e que não dão a mesma atenção».

É assim que muitos pobres vivem na miséria, envergonhados, fechados em casa. «As instituições têm muitas técnicas para saberem quem precisa e há alguns sinais. Muitas vezes sabem através do pároco ali da paróquia, das juntas de freguesia, através das mercearias de bairros. E é por isso que esta redução do comércio local tem impactos muito grandes no apoio às pessoas mais velhas».

Enquanto tudo isto se vai passando, Clementina vive com o marido e dois filhos deficientes. Nunca conheceu outra condição: é pobre. Vive da sua pensão por invalidez, de 300 euros, da reforma do marido, de 200, e dos subsídios dos dois filhos que, por serem deficientes, recebem cerca de 250 euros cada, por mês. Fazendo as contas, são mil euros por mês, 250 por cada elemento da família. Um valor muito abaixo dos 632 euros líquidos por mês que definem o limiar de pobreza, em Portugal. Ainda assim, Isabel Jonet garante: «Se formos personalizar caso a caso há situações ainda piores».

Aquilo a que esta família chama casa são paredes auto-construídas e divisões toscas. «Isto era um quintal do meu tio. Ele morreu e, pouco a pouco, tenho vindo a arranjar a casa. Pelo menos não pago renda», contenta-se Clementina. Dali vê-se Monsanto e o começo da A5. «A vista é bonita», descreve, valorizando o pouco que tem. A segurança não é muita: a casa ergue-se em cima de uma escarpa, mas Clementina parece não dar conta disso. O marido é pedreiro e tem sido ele a construir tudo, conforme é possível. A cozinha, por exemplo, divide-se por dois espaços distintos: a zona onde está o fogão, o frigorífico e os armários e, num pequeno quintal interior, fica o lava-loiças.

Outra grande ajuda para Clementina vem da Santa Casa da Misericórdia de Lisboa. Os dois filhos, Sofia, de 35 anos, e Gonçalo, de 30, vão todos os dias para o Centro Condessa de Rilvas. Uma carrinha vem buscá-los e trazê-los de volta a casa, daquele equipamento com centro de atividades ocupacionais para deficientes.

Trabalhadores sem sustento

A mulher, de 56 anos, envelhecida pela magreza e a doença, nunca conheceu outro estilo de vida. «A minha vida sempre foi difícil. A minha mãe, muitas vezes, não tinha dinheiro para nos dar comida. Comíamos sopas de café», relata, com um olhar triste.

Bem cedo começou a trabalhar mas o dinheiro nunca abundou. «Tinha 15 anos quando fui para a lavagem dos automóveis, numas bombas de gasolina. Só que aquilo depois mudou, começou só a vender pneus, e eu tive de me vir embora. A partir daí comecei nas limpezas». 

Ainda hoje é assim, nota a presidente do Banco Alimentar. «Há muitos trabalhadores pobres. Pessoas que trabalham mas que aquilo que ganham não chega para ir até ao fim do mês, porque o peso do preço da habitação, hoje, tem uma dimensão incrível nos orçamentos familiares. O que é que acontece? Preocupa-nos muito os trabalhadores pobres porque a maior parte deles são pessoas que têm crianças».

Naquele tempo, Clementina, adolescente, tinha de trabalhar e contentar-se em dividir o quarto com a irmã e os pais. Os outros três irmãos dormiam na sala, no sofá e num divã. Uma situação marcante para a mulher. «Naquele tempo não sabia bem o que é que eles, às vezes, estavam a fazer. Mas a pouco e pouco fui sabendo», conta Clementina, referindo-se aos pais a terem relações sexuais, na cama ao lado das filhas. «Claro que é chocante mas, para mim, acabou por se tornar normal. Era o que tinha».

Pelo meio, Clementina casou-se com o primeiro marido e pai dos dois filhos. Mais tarde separou-se e teve de sair de casa, uma habitação no Bairro Padre Cruz, que tinha sido atribuída pela Câmara Municipal de Lisboa. Voltou para casa da mãe e teve de deixar os filhos com o pai. Mas mais tarde recuperou-os e isso devolveu-lhe a felicidade possível. Continuava a trabalhar mas a não ter condições suficientes para dar-lhes o que comer. 

Nada faria supor que o caminho desta mulher seria interrompido aos 46 anos. «Deu-me uma trombose, não conseguia mexer-me e, além disso, tinha muitas doenças: fiquei muito magra, sem forças e tive de ficar em casa. Também tenho epilepsia, anemia, tive um mioma – operaram-me e tiraram-me os ovários –, pedra no rim. Tinha várias doenças». Chegou assim a pensão por invalidez e a tristeza de não poder trabalhar, ainda que o salário fosse magro. «Fico triste por não poder trabalhar, porque eu movimentava-me muito. Ia para aqui, para ali, para todo o lado. Hoje, se andar daqui para ali já tenho de me agarrar senão caio», explica, referindo-se ao percurso entre a sala improvisada e a porta.

Gonçalo e Sofia nasceram com a mesma deficiência, descrita pela mãe como «muita dificuldade em falar e deficiência motora». Os jovens têm, ainda, alterações na forma do rosto.

António Camacho é padrasto de Sofia e Gonçalo. Ainda hoje, apesar de reformado, Camacho esforça-se para dar melhores condições à família.

Bolos comprados a prestações 

Clementina não consegue sentir felicidade, apesar dos momentos de carinho proporcionados pelo marido e pelos filhos. «Felicidade em quê? Em ter os meus filhos da maneira que tenho? Em não pode trabalhar? Não poder movimentar-me para lado nenhum?». E, com o Natal à porta, acrescenta: «Felicidade era dizer assim: ‘É Natal e tenho uma mesa cheia!’. É mentira».

Até os bolos para enfeitar a mesa nesta quadra são comprados a prestações. «Há uma senhora que faz bolos em casa e, nesta altura, compro-lhe e vou pagando a pouco e pouco, para ter uma mesa mais ou menos, por causa dos miúdos».

É nesta quadra, mas também no final de maio, que o Banco Alimentar Contra a Fome faz as suas campanhas de recolha de alimentos, nos supermercados. De acordo com Isabel Jonet, as campanhas fazem «esse apelo, de que ninguém fique indiferente, porque há muitas pessoas à sua volta que precisam de ajuda para comer». E avisa: «Quando se precisa de ajuda para comer é quando já se desceu tão baixo na necessidade, já se está tão afundado nesta necessidade, que é difícil dar a volta à vida. Nestes casos, as pessoas perdem a esperança».

A campanha de recolha de alimentos do Banco Alimentar vai servir, nesta altura, para também levar mais comida às mesas de Natal dos pobres. «O Banco Alimentar é uma rede social real. E o que as pessoas nos dão muitas vezes é aquilo que comem nas suas próprias casas. Se comem arroz, dão arroz; se comem massa, dão massa. Portanto, há aqui esta noção de que podemos, em conjunto, ajudar famílias que não têm tudo à mesa».

A Junta de Freguesia de Campo de Ourique, no caso de Clementina, trata do resto. «Inscrevo-me para receber o cabaz de Natal. Antigamente davam mesmo um cabaz; agora dão um cartão, com 50 euros, para comprarmos umas coisinhas. Assim já consigo comprar umas filhós, uns figos, umas nozes, para eles comerem».

Dentro do banco alimentar

A VERSA visitou o Banco Alimentar Contra a Fome de Lisboa. Grandes armazéns erguem-se junto à Avenida de Ceuta. Chove copiosamente no dia do nosso encontro com voluntários, elementos de associações de solidariedade social e a presidente, Isabel Jonet, que nos faz uma espécie de visita guiada. 

Os voluntários andam numa roda viva, a correr de um lado para o outro. Escolhem e empacotam os cabazes. Na realidade, quando falamos de ‘cabazes’ referimo-nos a grandes ou médias estruturas em metal, em forma de caixa, onde são colocados os alimentos. Estes são escolhidos conforme as necessidades de cada associação de solidariedade social. Além da entrega de alimentos a famílias, como faz a Associação de Moradores do Casal Ventoso, o Banco Alimentar apoio lares de idosos, creches e outras valências. «Imagine, se for ajuda para um lar de idosos o cabaz não vai levar leites de bebé, nem farinhas. Se for para um infantário já leva», explica Isabel Jonet.

Os voluntários têm muitas tarefas. Isabel Jonet especifica: «Têm tarefas de armazém, e aí ajudam no atendimento às instituições, diariamente. Depois temos os voluntários que ajudam no escritório e há muitos que ajudam nos registos, nos telefonemas e num conjunto de tarefas administrativas».

Dentro do grande armazém onde estão os bens, os voluntários seguem uma lista, com os alimentos e quantidades, a colocar em cada cabaz. Além dos frescos, como tomate, cenoura, abóbora ou fruta de diversas qualidades, há também dois armazéns frigoríficos para acondicionar alimentos que precisam de frio. Isabel Jonet abre-os, com orgulho. Por ali há centenas de iogurtes e fruta. «Os alimentos chegam por várias origens», adianta a diretora. «Temos fornecedores da indústria agroalimentar, que produz alimentos. Muitos destes alimentos são excedentes de produção, ou seja, produtos que foram feitos mas que os produtores já sabem que não os irão vender». É o caso, por exemplo, dos iogurtes.

De onde vem a comida

Jonet revela as outras fontes de alimentos: «Também temos doações das cadeias de distribuição (hiper e supermercados). E temos doações do setor agrícola, muita fruta e legumes, que são doados no âmbito de retiradas, programas financiados pela Comissão Europeia. Além disso, também há doações diretas de frutos que, por alguma razão, não podem ser comercializados: ou porque não têm o tamanho; ou porque já estão maduros demais; ou, então, só porque não encontraram preço para o escoamento», prossegue a presidente do Banco Alimentar.

Mas há mais apoios. «Temos, também, doações dos mercados abastecedores. Há operadores que nos dão os produtos que não venderam, no final do dia». Tudo isto sem esquecer, claro, as duas grandes campanhas de recolha, em maio e novembro. Isabel Jonet realça a importância das campanhas. «O que recebemos nas campanhas são bens muito necessários, porque são bens não perecíveis, como leite, azeite, óleo, entalados. É que estes alimentos não têm excedentes de produção».

No dia em que estivemos no Banco Alimentar Contra a Fome, em Lisboa, havia também muitas abóboras para oferecer. Não estavam maravilhosas mas, para as instituições, valem ouro. «O Banco Alimentar tem sido uma ajuda muito preciosa para a nossa instituição», relata Elisabete Mota, da instituição ‘O Nosso Mundo’. «As abóboras, por exemplo, vão ser todas arranjadinhas e depois fazemos sopa. Quando a fruta está um bocadinho tocada ou muito madura, fazemos salada de frutas», exemplifica Elisabete. Na IPSS ‘O Nosso Mundo’, localizada na Apelação, em Loures, estes alimentos fazem, de facto, toda a diferença. 

Ali há infantário e uma cantina social, onde os utentes podem ir buscar refeições confecionadas. «Temos muitos gastos e muito pouco rendimento, porque os nossos utentes pagam muito pouco», diz Elisabete, referindo-se às crianças do infantário. E compara: «Se for a uma instituição no Parque das Nações é muito diferente, porque a população tem outros rendimentos. A Apelação, como sabe, é uma zona muito pobre».

Nenhum alimento é desperdiçado

Esta associação está em linha com um dos princípios básicos do Banco Alimentar. «A nossa missão é a luta contra o desperdício. E, portanto, nós tentamos dar os produtos nas melhores condições. Às vezes há alguma fruta, ou as abóboras, que podem estar mas maduras num lado e tem de se escolher. É uma lógica à antiga: vamos aproveitar onde sobra para entregar onde falta. Além disso, todos os alimentos que saem do Banco Alimentar estão em condições de higiene e salubridade. Temos uma empresa que nos ajuda, há muito tempo, com a verificação de tudo», explica Isabel Jonet.

Nas instalações do Banco Alimentar Contra a Fome de Lisboa existe, também um compostor «para colocar esses frutos que estão muito maduros. Misturamos com estilha e fazemos composto orgânico para as terras. Ou seja, nada se perde, tudo é aproveitado».

Tudo é feito numa base de confiança. Ainda assim, o Banco Alimentar Contra a Fome quer garantir que tudo corre da melhor forma, no que diz respeito às instituições e aos utentes. «Temos 90 voluntários visitadores, que são pessoas que andam no terreno. Vão às instituições para ver se esta parceria que temos com as instituições está a ser bem executada».

Estes voluntários também têm diversas tarefas. «Vão ver se os produtos estão bem guardados, se as despensas têm condições de higiene e se as famílias os estão a aproveitar bem», conta Isabel Jonet. «Nas campanhas de recolha de alimentos há uma grande mediatização do Banco Alimentar. Mas o dia a dia é de formiguinha e temos de trabalhar com muita organização, muita logística, porque sem isso não seria possível ter esta quantidade de alimentos tão grande que entregamos».

A história do Banco Alimentar Contra a Fome já tem 34 anos, foi fundado em Lisboa, em 1991. Hoje existem 21 bancos, espalhados pelo continente e ilhas. «A maior crise que sentimos foi durante a pandemia, porque a economia parou. Mas aos poucos, nem passado um ano, fomos recuperando», finaliza Isabel Jonet, que começou por fazer voluntariado no Banco Alimentar Contra a Fome em 1993, aos 33 anos. Desde 2002 que é presidente do Banco Alimentar de Lisboa e da Federação Portuguesa dos Bancos Alimentares.