No domínio da “soft law” os Governos tendem a produzir documentos de análise e reflexão, fixando grandes objectivos para determinadas áreas. A defesa não escapa a este esforço de análise, comunicação e política. Nos EUA, no segundo mandato de Reagan, foi aprovada, em 1986, com apoio esmagador de ambos os partidos, uma lei de reforma do sector da defesa (Goldwater-Nichols Act) e que passou a obrigar à elaboração, pelo executivo, de uma estratégia de segurança nacional (ESN). A primeira surgiu em 1991; Bush jr. publicou duas (2002 e 2006), muito marcadas pelo pós-11 de Setembro e a doutrina da guerra preemptiva; Obama manteve a mesma produtividade (2010 e 2015, esta com uma aposta no combate a insurgentes próximos da Al Qaeda e dos talibãs e na promoção de governos legítimos); o primeiro Trump publicou uma em 2017 (eliminando as alterações climáticas como ameaça e identificando Rússia e China como potências revisionistas); Biden publicou duas em sucessão e num só mandato (2021 e 2022), apostando no multilateralismo (com destaque para a NATO) e nas coligações entre Estados, recuperando as alterações climáticas como ameaça (adicionando-lhes as crises sanitárias e pandémicas) e mantendo a identificação da Rússia e da China como principais ameaças. Para além da dimensão pública, as ESN têm uma versão classificada que é enviada ao Congresso.
No passado dia 5 de Dezembro Trump publicitou a sua segunda ESN, modesta na extensão das suas 29 páginas, antecedida de página e meia de prefácio auto-congratulador. A ESN de 2025 vale pelo que não tem. A Rússia desapareceu da lista das ameaças, passando a ser tratada como um problema dos europeus a quem é cometida a tarefa de “re-estabelecer a estabilidade estratégica com a Rússia”.
A União Europeia também desapareceu da ESN, sendo referidos apenas os Estados europeus, ficando clara a intenção da Administração Trump de, dividindo para reinar, negociar bilateralmente, esquecendo a realidade das competências delegadas pelos Estados europeus, por via dos Tratados, na União. A desaparição da Rússia da lista de ameaças foi compensada pelo programa dos EUA para “Promover a Grandeza Europeia” (pela intertextualidade com um “Make Europe Great Again” que já teve a adesão dos Eurodeputados de extrema direita, auto-denominados “Patriotas pela Europa”). A Europa é tratada em duas páginas e meia (“size matters”…), com um mecanismo de avaliação (segundo a ESN vários Estados Europeus não teriam capacidades militares ou riqueza suficiente para serem verdadeiros Aliados dos EUA) e um procedimento de tutela (para garantir na Europa a liberdade de expressão, o direito de oposição, as identidades nacionais e a “auto-confiança” (sic). A teoria da grande substituição é acolhida na pp. 27 da ENS: “Over the long term, it is more than plausible that within a few decades at the latest, certain NATO members will become majority non-European.” O compromisso dos EUA com os Aliados, mesmo na NATO, está sob ameaça e a possibilidade de alargamento da NATO é abandonada (pp. 27).
Trump substitui a ameaça russa pela dos Estados europeus que, não tendo governos maioritários, “violam os princípios básicos da democracia para suprimir a oposição” (pp. 26). Este tem sido o discurso da Federação Russa, acompanhado, em boa coerência pelo apoio material e financeiro a partidos de extrema direita na Europa ocidental. Serve de exemplo o conúbio com o Rassemblement National francês.
Trump consegue por via da ESN unir EUA, Rússia e China na identificação da União Europeia como ameaça. Deveria ser o bastante para federalizar os europeus.