Os livros têm o seu próprio destino». Sim, mas qual? Quando jovem investigador encontrei, ao entrar no átrio do centro de investigação onde trabalhava, um enorme monte de livros sobre a ciência a que então me dedicava. Formavam uma pirâmide, mas compreendia-se que não tinham sido empilhados mas despejados ali. Perguntei o que aquilo era. «São os livros do Prof. X». O Prof. X era um investigador eminente, uma referência na sua área e um homem muito culto, que legara os livros à biblioteca do centro de investigação. Mas, nesse caso, porque não estavam lá mas no átrio e num molho? A ideia, explicaram-me, era que já não tinham espaço na biblioteca (não era verdade, era um espaço enormíssimo, ocupando três ou quatro grandes salas e com espaço para mais estantes). Por isso, as pessoas que passavam que tirassem o que quisessem. Hesitei e não tirei nada: parecia-me um total desrespeito. No dia seguinte, vendo a pilha menor e sabendo que havia livros que me interessavam e que o resto iria para o lixo, tirei dois, esgotadíssimos, que não havia na biblioteca e que eram obras de referência. Ainda os tenho. Sei de vários casos semelhantes. O mesmo problema se me colocou (e coloca) com os livros de meus Pais e Avós: eu e os meus irmãos não temos espaço, e, ainda que tenha arrumado muita coisa, grande parte deles ficou em caixas. Sei que se os vendêssemos haveria uma indignação geral: «Estão a vender os livros do Prof. Y!». Sim, seria verdade, mas o que fazer? O espaço não é infinito, eu próprio e a minha mulher temos bibliotecas muito grandes e certos livros perderam totalmente a utilidade. Dir-me-ão que a dispersão das bibliotecas, tal como a dispersão dos móveis ou dos quadros de uma família é inevitável e não é um problema que mereça grande reflexão. Inevitável será; que não mereça reflexão é outra questão. As bibliotecas familiares têm uma longa história. Algumas são colecções de valor, outras são de aparato – os livros e o saber foram símbolo de estatuto. Têm uma mistura de livros preciosos, de livros de época e de trivialidades. O que fazem, nesses casos, os herdeiros varia. Ou os livros mais preciosos são vendidos e o resto despachado para um alfarrabista ou, guardam-se as preciosidades e distribui-se pela família o que lhe interessa e vende-se ou doa-se o resto. Ou seja, as ‘bibliotecas de família’ são, de certo modo, uma ficção, ou quando muito uma realidade muito flutuante, sempre em mudança e até em deslocação de sítio para sítio. Há casos de bibliotecas privadas que não são ‘para ler’: são colecções temáticas. Quando o dono de tais bibliotecas tem meios ou influência política o assunto resolve-se tomando uma biblioteca pública o conteúdo; o que dela se fará depois é um mistério. Mas o que tudo isto significa é que, na prática, as grandes bibliotecas são um estorvo, quer para quem as herda quer para quem as recebe dadas. Quem as herda, se tiver os meios e gostar de livros, tentará, com esforço e despesa, acomodá-las. Quem as recebe tentará, assim que possível, ver-se livre delas. Que significa então a biblioteca e, mais exactamente, o livro? Volto aos dois livros que tirei da colecção do Prof. X. São de zoologia; estão completamente desactualizados. Mas foram importantes para ele (e, portanto, para mim) e foram-me muitíssimo úteis. Deitá-los-ei fora? Impossível. Mais, olho à minha e volta e é muito pior: livros com valor histórico, livros que foram importantes para alguém que respeitei, livros que eu próprio adoro. Impossível aliená-los. Dir-me-ão: todos esses livros existem em bibliotecas públicas. Não é assim, alguns são raridades. Mas mesmo que o fosse, quem me garante que essas bibliotecas não irão brevemente parar ao lixo? Estarão então em PDF. De novo não é verdade, mas sobretudo um livro físico tem uma importância que vai além do seu conteúdo – basta pensar no valor tipográfico e da encadernação de um bom volume. O livro não está em crise. Basta ir a qualquer livraria para o perceber. É o livro velho, e até o livro antigo, que o estão. O problema é o da perda de reverência pela memória. Nestes tempos de casas ‘clean’, em que se substituem Arraiolos e persas por tapetes de ráfia, em que se pintam móveis de pau-santo de cinzento ou cor de rosa, em que se rejeita tudo quanto é passado, o livro não escapou à voragem. É da rejeição da memória que se trata.
Habent sua fata libelli
Nestes tempos de casas ‘clean’, em que se substituem Arraiolos e persas por tapetes de ráfia, em que se pintam móveis de pau-santo de cinzento ou cor de rosa, em que se rejeita tudo quanto é passado, o livro não escapou à voragem.