Não deve haver dia nenhum que não se fale do Serviço Nacional de Saúde, ou pela comunicação social ou através das redes sociais ou em debates vamos sabendo de casos que, pela sua natureza e implicações, nos chocam e nos obrigam a refletir. Eu próprio, por diversas vezes, já abordei o tema neste espaço com base na experiência pessoal que fui adquirindo, tentando pôr ‘o dedo na ferida’ na procura de soluções. Em minha opinião, por mais voltas que se dê, a razão principal para estas falhas constantes, tem a ver com a falta de reestruturação completa do SNS, tarefa ingrata e difícil para quem quiser mesmo resolver o problema de vez e cortar ‘o mal pela raiz’. Todos sabemos que é preciso mais pessoal a todos os níveis, outras renumerações, novas formas de trabalhar, mais camas de hospital, assegurar a continuidade de cuidados extra-hospitalares e estabelecer regras tanto para utilizadores como para funcionários. Sem isso, nada feito. Se quisermos um SNS forte, competitivo e que dê resposta às necessidades dos utentes, terão de ser contempladas todas estas vertentes, caso contrário, continuando a ‘pôr remendos’ aqui e acolá como tem acontecido até agora, não se vai além de uma caricatura do modelo há muitos anos criado, mas que presentemente já não consegue chegar a todos os portugueses.
Na instituição onde tenho dado a minha colaboração (Instituição Particular de Solidariedade Social) pude testemunhar em diferentes ocasiões as múltiplas fragilidades do SNS a nível hospitalar o que, para dizer a verdade, não me surpreende. Hoje em dia, numa urgência hospitalar, faz-se o que é possível fazer dentro das limitações existentes. Os doentes são muitos, os trabalhadores poucos, as condições de trabalho não são as melhores e as falhas sucedem-se. É certo que uma grande parte das ditas urgências que chegam aos hospitais não o são, o que sobrecarrega quem devia estar ao serviço apenas para as verdadeiras emergências, mas, isso não explica tudo. Há outros obstáculos a ter em conta. Um deles é a dificuldade na distribuição dos doentes realmente urgentes pelos diversos serviços hospitalares. Na maior parte das vezes, como não há vagas nem camas de retaguarda, o resultado está à vista: horas e horas de espera, doentes amontoados em macas espalhadas pelos corredores, altas precoces, aumento dos casos sociais que continuam a ocupar indevidamente camas de hospital e o Estado a ter de suportar esses custos elevadíssimos. Esta é a realidade.
Uma residente da dita instituição com quase noventa anos, diabética com complicações renais e cardíacas severas desenvolveu uma grave infeção respiratória sendo referenciada à urgência. Estranhamente não ficou internada e regressou ao domicilio apesar de continuar sem condições clínicas para permanecer na residência. Face à gravidade do quadro clínico, foi de novo acionado o INEM para voltar a levá-la para o hospital no mesmo dia, mas, atendendo à complexidade da situação a doente teve de ser ‘estabilizada’ no local e só depois foi possível transportá-la. Do lado de lá do oceano, a filha desesperada tentava contactar o hospital para saber noticias da mãe, só que, de todas as vezes que o fazia, a chamada ficava em espera. No dia seguinte, ao falar comigo, pôs-me a questão: «Doutor, será isto o SNS de que tanto se fala?». Respondi-lhe com franqueza sem esconder a minha mágoa: «Minha senhora, isto é o que nós não queremos que exista no SNS».
E mais não disse pois, como profissional de saúde, nunca seria totalmente isento na minha avaliação. No fundo, qualquer um de nós, perante uma situação semelhante, teria naturalmente a mesma reação: Será isto o SNS? Quantas vezes já não fizemos essa pergunta? E se amanhã um imprevisto deste nos bater à porta como devemos proceder? Recorrer ao setor privado? Como? Se a maioria das reformas dos utentes mal dá para as despesas do dia a dia! E será que o setor privado é sempre uma alternativa?
Apelo, uma vez mais, aos nossos governantes para que se pense a sério no problema e se invista, quanto antes, no Serviço Nacional de Saúde. Aquilo que ainda resta está em risco de ruína e a tendência é para piorar. Até quando temos de assistir a esta dolorosa degradação? Por muito que me doa, a verdade tem de ser dita. ‘Quem tiver ouvidos para ouvir que ouça’.