1.O princípio do Estado de Direito, consagrado no artigo 2.º da Constituição da República Portuguesa e no artigo 2.º do Tratado da União Europeia, é a pedra angular de qualquer democracia. Exprime a ideia fundamental de que o exercício do poder público está subordinado à lei, à proteção dos direitos fundamentais e ao controlo por instituições independentes.
O Estado de Direito contempla subprincípios interligados: legalidade, que implica um processo legislativo transparente, responsável, democrático e pluralista; segurança jurídica; proibição do exercício arbitrário do poder executivo; tutela jurisdicional efetiva por tribunais independentes e imparciais, com fiscalização jurisdicional efetiva, incluindo o respeito dos direitos fundamentais; separação de poderes; e igualdade perante a lei.
A independência entre o poder político e o poder judicial constitui um princípio estruturante do Estado de Direito, indispensável ao equilíbrio do sistema de separação de poderes. Tal independência assegura a inexistência de interferências indevidas entre órgãos de soberania e garante que cada poder exerce as suas competências próprias com autonomia, imparcialidade e respeito pelos limites constitucionais que o enquadram.
2. Nas últimas semanas, fomos surpreendidos pela flagrante violação do segredo de justiça, com a divulgação numa revista, de cerca de 50 comunicações de António Costa, à época primeiro-ministro, intercetadas pelo Ministério Público, no âmbito da Operação Influencer. Há já algumas semanas, tinha também sido notícia que o Departamento Central de Investigação e Ação Penal (DCIAP) identificou sete escutas em que António Costa era interveniente e que não foram comunicadas ao Supremo Tribunal de Justiça, como está previsto na lei.
Em primeiro lugar, está em causa o crime de quebra do segredo de justiça, previsto e punido pelo art.º 371, nº 1 do Código Penal. Ou seja, alguém com acesso ao processo, que não está disponível nem às defesas dos investigados, facilitou a estranhos a sua consulta, nomeadamente o teor das transcrições das interceções telefónicas. Ao qual se acrescenta o facto de o teor das comunicações em nada estar relacionado com a investigação acima referida, tornando ainda mais incompreensível a sua existência e reforçando a sua ilegalidade.
Em segundo lugar, este tipo de fuga de informação atinge de forma grosseira os mais elementares direitos dos cidadãos, constitucionalmente protegidos, ao expor em praça pública matérias próprias da governação e do funcionamento do Estado, bem como comunicações de natureza privada. Ao fazê-lo, não só viola garantias fundamentais, como contribui para a construção de uma atmosfera inquietante, quase orwelliana, que nenhum Estado de direito pode tolerar. Acresce ainda o seu efeito profundamente demolidor sobre a credibilidade das instituições democráticas, fragilizando a confiança pública e abrindo espaço para o avanço de movimentos populistas que prosperam precisamente na erosão dessa confiança.
Num Estado de Direito não pode haver escutas ilegais. Como dita a lei, todas as escutas que não são relevantes para um processo têm de ser destruídas. O direito à privacidade está consagrado no art.º 26 da Constituição. Não se escutam pessoas – governantes ou não – anos seguidos só porque sim, não se entrega o teor das escutas a órgãos de comunicação social, muito menos quando os visados tenham a elas acesso. Num Estado de Direito, digno desse nome, a justiça não atua politicamente.
Cabe ao Senhor Procurador-Geral da República, na qualidade de responsável máximo do Ministério Público, assumir plenamente as suas responsabilidades perante o país, prestar os esclarecimentos que se impõem e agir com determinação e assegurar que este crime é investigado com determinação e sentido de urgência. É igualmente seu dever garantir total transparência, dando conta pública das iniciativas que decidiu tomar, do estado em que se encontram e dos resultados que delas decorrem, para que a confiança dos cidadãos nas instituições seja efetivamente preservada.
Cabe ao Presidente da República garantir o regular funcionamento das instituições democráticas. Considerando a gravidade deste caso em particular, seria importante que o Primeiro-Ministro Luís Montenegro e a Ministra da Justiça Rita Júdice assegurem o compromisso com o Estado de Direito, promovendo transparência e exigindo que todas as instituições cumpram a lei e investiguem estes factos com rigor.
É o Estado de Direito e a manutenção da nossa democracia que está em causa.
Cabemo-nos a nós indignarmo-nos.
Eurodeputada e Vice-Presidente do Grupo S&D