«A masculinidade de Cristo não é acidental», afirmam defensores da exclusividade masculina nos sacramentos da Ordem na Igreja católica. A ideia é frágil no objetivo. Os escritos sobre Jesus revelam uma pessoa que contrariou precisamente a ‘masculinidade’ da época. Nos evangelhos que orientam a Igreja não há revelações que sustentem a segregação da mulher. No restante Novo Testamento – textos sobre os primeiros passos das comunidades cristãs –, há referências contraditórias sobre o papel da mulher, que carecem de cuidadosa exegese. Se Paulo legitima a diaconisa Febe e abre espaço a uma – chamemos-lhe, arriscando – teologia da igualdade, ao afirmar que, perante Deus, «não há judeu nem grego, (…) não há homem, nem mulher» (Gálatas, 3), também temos outros textos em que o apóstolo propõe o que hoje é considerado misoginia (Efésios, 5). Estamos perante o desafio maior de um ‘texto sagrado’: a interpretação e o contexto.
O cristianismo é um bom drama de interpretação, mas retirar o texto do contexto é um exercício de traição. No caso do cristianismo institucional, este drama foi instrumentalizado para abusos de consciência e, especificamente, menorizar a mulher contrariando a relevância desta na evangelização e no testemunho. Até a devoção mariana permitiu construir o injusto arquétipo da mulher passiva, através de uma exaltação neutralizadora.
Pode alegar-se que é matéria da tradição e a tradição é força maior na Igreja, mas não há como negar que o debate – acesso da mulher ao diaconado ou ao sacerdócio – carece, além da teologia, da crítica histórica, da abordagem cultural e antropológica. Insistir na impossibilidade fragiliza a legitimidade da Igreja para defender direitos e deveres equitativos noutras dimensões das relações humanas. Ao negar o acesso da mulher à mais relevante função institucional no altar, a Igreja dá a entender que a pessoa feminina não tem a mesma dignidade da pessoa masculina. É um paradoxo numa comunidade que faz os seus membros iguais no batismo. Não é uma questão de poder para ter voz de comando, mas de poder exercer um serviço que, na Igreja, tudo deve implicar na vida de crentes e respetiva comunidade: o mistério do culto, alfa e ómega da experiência cristã católica.
O que está em causa é a sintonia com o tempo, em coerência evangélica, a passagem da estrutura da honra para a estrutura da dignidade, a superação da subordinação sexual ou de género, e não a resposta a uma reivindicação feminista. Se e quando acontecer, é inevitável um processo de adaptação, previsivelmente difícil, mas a ‘fidelidade’ à ‘verdade’ na fé cristã é estática pelo medo ou dinâmica pela criatividade? A Igreja católica continua a não se sentir autorizada para admitir a mulher no diaconado ou no sacerdócio. Sente-se autorizada para não admitir a igual dignidade entre batizados?
Apesar de reafirmar o «não» ao diaconado feminino, uma comissão de estudo nomeada ainda por Francisco diz agora que não consegue «formular um julgamento definitivo». Deixou de ser definitivo o «não» de João Paulo II, que tentou encerrar o assunto. O próprio papa Leão XIV, admite que «continuará a ser um problema». Segundo os evangelhos, a primeira testemunha daquilo que se denomina como ‘ressurreição’ foi uma mulher e os homens não acreditaram nela.